sábado, 24 de outubro de 2009

1315) “Os Imperdoáveis” (31.5.2007)



Revi em DVD este filme premiado de Clint Eastwood quando terminava a leitura de Cangaceiros de José Lins do Rego, e a transição de um para o outro foi macia, parecia um asfalto bem assentado. São mundos contíguos, nos quais, apesar das muitíssimas diferenças históricas e sociais (EUA da década de 1880, Nordeste da década de 1920) vigora uma mitologia milenar na qual retornam arquétipos cada vez mais antigos e cada vez mais robustos. Como por exemplo o Jovem Ambicioso: um rapaz imaturo que se deixa seduzir pelas lendas grandiloqüentes que cercam o mundo da violência e resolve entrar para o “pistoleirismo”, apenas para descobrir que as coisas não são tão românticas ou heróicas como ele imaginara.

Outro arquétipo – este apenas no filme -- é o Matador Aposentado, o sujeito que depois de fazer a fama e cair em desgraça imagina que poderá, como o Kid Morengueira dos sambas de Miguel Gustavo, comprar um sítio e criar galinhas. Ledo engano. Cedo ou tarde um Jovem Ambicioso surgirá desafiando-o para um duelo, ou então ele será forçado (como Eastwood aqui, e como o Shane de Os Brutos Também Amam) a tomar o partido de gente indefesa. Em O Dragão da Maldade, Glauber Rocha também mostra Antonio das Mortes tentando se aposentar mas sendo convocado para “uma última missão”. Este tema é tão recorrente, há milênios, que deve exprimir uma verdade psicológica profunda. Quem mata torna a matar. Quem uma vez sujou as mãos com sangue nunca conseguirá lavá-las, como ocorreu com Lady Macbeth. Cedo ou tarde, terá que matar de novo.

Um personagem arquetípico presente em ambos os filmes é o Bardo, o contador de histórias que imortaliza os heróis. No livro de Zé Lins é o cantador Dioclécio, que seduz a imaginação do menino Bento desde a sua infância no Exu, que canta depois as façanhas do seu irmão, o cangaceiro Aparício, e que nos últimos capítulos do livro aparece para ajudar Bento a fugir daquele ambiente condenado à violência insensata. No filme de Eastwood, é o escritor Beauchamp, um daqueles escritores de “dime novels” que percorriam o Oeste escrevendo livrinhos baratos com as aventuras de pistoleiros como Buffallo Bill ou Jesse James. Há outro ótimo personagem equivalente em Um de nós morrerá (“The left-handed gun”), a anti-convencional biografia de Billy the Kid feita por Arthur Penn. Em Os imperdoáveis, Beauchamp surge no vilarejo como um puxa-saco do pistoleiro English Bob (um papel menor, interpretado de forma magnífica por Richard Harris), depois passa-se para o lado do xerife Little Bill, e nas últimas seqüências está entrevistando Will Munny. Ele é covarde, servil, adulador – um retrato nada elogioso para os escritores, e tirarei satisfações com Clint Eastwood na primeira em vez em que o encontrar pessoalmente. Mesmo assim encarna um personagem essencial para um mundo em que, mais do que a verdade, publica-se a lenda: ele é o cara que registra a lenda.

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