É um dos diálogos mais citados da história do cinema, e aparece no filme de Carol Reed O Terceiro Homem (1949). Nele, Orson Welles faz o papel de Harry Lime, um criminoso cínico e esperto. A certa altura do filme, Lime está discutindo política com outro personagem, que faz o elogio dos regimes democráticos. Lime dá de ombros e retruca:
-- A Itália dos Bórgias era cheia de assassinatos, terror, guerra e crime, mas produziu Michelangelo, Leonardo Da Vinci e a Renascença. A Suíça vive na democracia e no amor fraterno há 500 anos, e tudo que produz são relógios-cucos.
Harry Lime parece estar dizendo que uma sociedade extremamente dinâmica, ainda que violenta ou injusta, produz obras de arte mais excepcionais do que as de uma sociedade toda equilibradinha e bem-comportada.
Mas Michelangelo e Da Vinci não são um sub-produto dos crimes e da corrupção dos Bórgias; são produto de uma conjugação de crescimento econômico e concentração do poder político, num contexto em que as artes (no caso arquitetura, pintura e escultura) estavam intimamente ligadas a este poder. Erigir catedrais, encomendar esculturas ou pinturas era uma forma de arrebatar os corações e mentes da população. Na Itália dos Bórgias, dominar as artes visuais era tão importante quanto, no tempo de hoje, dominar a TV.
Crimes, envenenamentos, guerras entre cidades-estado, eram também conseqüências dessa época marcada pelo excesso, pela concentração, pelo poder gravitacional do dinheiro e da vontade política de grupos totalitários mas de gostos refinados. Deflagrar uma guerra e erigir um palácio eram sintomas diferentes da mesma situação.
Mas o palácio não existe “por causa” da guerra. Há situações históricas em que guerras, assassinatos e derrame-de-dinheiro não produziram nenhuma obra de arte memorável. Quais as grandes obras resultantes dos governos de Ferdinand Marcos nas Filipinas, de Papa Doc no Haiti, de Saddam Hussein no Iraque?
Por outro lado, não se pode dizer que a democracia na Suíça só produziu relógios-cuco – há também o chocolate e as contas numeradas... Acho meio injusto comparar Florença logo com a Suíça, esse bastião da respeitabilidade, da ordem e do bom comportamento.
Se Harry Lime queria encontrar um regime democrático para contrapor ao regime autocrático dos Bórgias, poderia muito bem ter recorrido aos Estados Unidos. Gostemos deles ou não, os EUA são um ótimo exemplo de como a liberdade democrática, longe de gerar meros relógios cucos, pode contribuir para gerar arte de primeira. Pode-se não gostar desta ou daquela tendência ou escola, mas ninguém pode negar que a literatura, o teatro, as artes plásticas, o cinema americano produziram ao longo do século 20 uma série ininterrupta de grandes obras.
Obras que são fruto da vitalidade econômica aliada à vitalidade social, que é o que os EUA e a Itália dos Bórgias têm em comum. A arte nasce da intensidade com que um povo vive, seja na guerra ou na paz.
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