Às vezes interpretamos erradamente uma frase ou uma imagem, e essa interpretação errada gera uma idéia diversa da idéia verdadeira.
Uma vez eu estava tentando copiar de ouvido uma letra dos Rolling Stones, e copiei o refrão assim: “What a trek in his care hall!...” Fui ao dicionário, o qual me informou que “trek” era “passeio de carro-de-bois”, “care” era “inquietação”, e “hall” era “sala”.
O verso, portanto, dizia: “Que passeio de carro-de-bois em sua sala de inquietação!...” Eu pensei cá com meus botões: “Eita, isso só pode ser efeito da maconha no juízo desses caras!”
Quando percebemos que nossa interpretação foi errada, e percebemos o que era aquilo de verdade, ficamos com aquela idéia maluca nas mãos, sem saber direito o que fazer com ela. Talvez a melhor solução seja usá-la criativamente.
Foi o que fez José Saramago, que um dia vinha andando pela rua, passou por uma banca de revista, e, naquela olhada de relance que a gente dá para aquela profusão de capas de revistas e manchetes de jornal, leu: “O evangelho segundo Jesus Cristo”.
Achou estranho, voltou atrás, releu: não era nada daquilo. Ele tinha lido palavras que estavam em frases diferentes, e, sem querer, montou aquele título. Saiu dali ruminando: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo... Está aí uma idéia interessante...” E escreveu um livro inteiro tendo este título como ponto de partida.
O crítico Jonathan Rosenbaum usa um termo interessante, “creative indirection”, “desvio criativo”, para designar esse tipo de associação involuntária de idéias que acaba tendo um papel inspirador.
Talvez o que nos fascina nessas idéias seja o fato de que, tendo sido geradas pelo Acaso, elas tenham aos nossos olhos uma cor de novidade, de originalidade. Nunca teríamos chegado a elas pelos caminhos naturais do nosso raciocínio. Quando caem do céu no nosso colo, elas nos fascinam, e parecem conter em si um significado cabalístico, misterioso. Excitam a nossa curiosidade, a qual é sempre um ótimo detonador para a criatividade.
Artes coletivas como o cinema e o teatro também estão cheias de situações inesperadas cujo potencial criativo é percebido pela intuição de um diretor, que agradece ao Acaso e incorpora o desvio.
Grande parte da criação do Surrealismo seguiu percursos dessa natureza, produzindo choques aleatórios entre imagens ou palavras, para daí extrair uma nova sensibilidade poética.
O movimento surrealista foi uma espécie de culto ao erro, uma embriaguez de erros voluntários que revelavam, com sua sintaxe selvagem, caminhos inesperados para a poesia.
O Surrealismo “tout court” ficou meio isolado nas vitrines da História, mas ninguém pode negar a vantagem de sua influência libertadora em poetas como Garcia Lorca, Neruda, Jorge de Lima, etc.
Quanto ao verso dos Rolling Stones, quando vi a letra impressa constatei que era: “What a drag it is getting old!...” Que saco é ficar velho! Mas eu tinha dezoito anos, não podia mesmo ter entendido.
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