segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

0678) “Invenção de Orfeu” (21.5.2005)




Ainda conservo um exemplar, muito manuseado e anotado, da edição de bolso de Invenção de Orfeu que Jakson Agra me presenteou por volta de 1975. Me fez companhia durante estes anos todos, e creio não estar cometendo nenhuma indiscrição se disser que muitas vezes me bastou abri-lo ao acaso, ler uma ou duas páginas, para ir direto para o caderno, com um poema prontinho na cabeça. 

Plágio? Não, coleguinhas. A grande poesia tem este efeito hipnótico de poder nos transportar para um estado mental onde nossos próprios poemas desabrocham maduros ao nosso toque, implorando para ser colhidos. Numa metáfora informática: para ler um poema assim, nosso cérebro tem que rodar o mesmo programa que é necessário para escrever algo parecido.

Coisa impressionante a poesia brasileira. Temos poemas-livro de riqueza inesgotável e novidade permanente. Qualquer um deles, isoladamente, justificaria a existência de um país e de uma cultura: Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, Cobra Norato de Raul Bopp, Poema Sujo de Ferreira Gullar, Morte e Vida Severina de João Cabral, Galáxias de Haroldo de Campos... e tantos outros que imperdoavelmente desconheço.

Invenção de Orfeu de Jorge de Lima é um desses Louvres poéticos onde cada página é uma Mona Lisa, uma Vitória de Samotrácia. A Editora Record acaba de reeditá-lo, tornando novamente acessível o seu fascinante carrossel de imagens surrealistas, linguagem épica, erotismo místico, geografia mágica, mitologia cristã, métrica clássica, ousadias sintáticas e vocabulares.

“Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo”: a voz tropicalista de Gilberto Gil entoava estes versos de Torquato Neto que citavam o Canto VI da Invenção de Orfeu

Jorge de Lima influenciou os tropicalistas, e deu o ponto de partida para O Grande Circo Místico de Chico Buarque e Edu Lobo, um dos melhores discos conceituais da MPB. 

Morto em 1953, continua sendo estudado e discutido pelos críticos, mas sua obra precisa de reedições que a deixem acessível a um público maior.

Numa época em que a poesia desliza preguiçosamente pelas águas mansas do verso sem métrica, do verso sem rima, do verso curtinho, do verso meramente esperto e galhofeiro, a poesia de Jorge de Lima pode ajudar todos nós a reativar funções verbais de maior complexidade e organização, e principalmente, de maior nível de exigência. 

Não é fácil escrever com o rigor técnico e a assustadora liberdade criativa de Jorge de Lima neste poema. Não direi que a gente precisa escrever parecido com ele; mas um poeta capaz de dominar uma linguagem no mesmo nível de complexidade verbal e imaginativa que a dele é um poeta capaz de escrever qualquer coisa. 

Aprender a ler é aprender a escrever. Ler Invenção de Orfeu do primeiro ao último Canto é um curso de Doutorado em personalização da dicção poética. Uma viagem ao Inconsciente individual, da qual emerge toda a História coletiva de uma nação.






2 comentários:

Renato Tardivo disse...

fala braulio! não sabia da relação entre jorge de lima e "o grande circo místico". adoro esse disco. fui ler jorge de lima de tanto o raduan o citar. e esse seu texto me deu a conhecer um pouco mais o raduan - porque esse doutorado eu acho que ele fez: "como conhecer as coisas senão sendo-as?". grande abraço.

Braulio Tavares disse...

Fala Renato... O Circo Místico é um poema em prosa de Jorge de Lima, pode ser encontrado em suas obras completas. Serviu de mote para as canções do musical, que muitas vezes se distanciam bastante do original, mas são igualmente boas. Agora -- o que eu não sabia era que Raduan era assim tão fã de JdL.