segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

0677) Teoria da inspiração (20.5.2005)




(Colin Wilson)

Não tem pra onde correr. Toda vez que um cineasta, teatrólogo, escritor, etc. dá uma entrevista, lá vem a pergunta de sempre: “E de onde vem a inspiração?” 

Eu entendo e compartilho o drama dos coleguinhas da imprensa, que todos os dias são forçados a fazer uma prancheta inteira de perguntas a desconhecidos. Mas isso não me poupa do suspiro resignado diante desta questão específica, que, caso vocês não saibam, é uma das mais desnecessárias entre as que abordam a criação artística. A inspiração, para o sujeito que cria, é o óbvio, é o inevitável, é o mais-que-possível. 

Um leigo deve pensar que um artista é um sujeito igual a todo mundo, que acorda, escova os dentes, dedica-se a tarefas rotineiras, e de repente é possuído por um espírito, ou atingido por um raio, e passa a produzir febrilmente uma obra de arte, antes que aqueles minutos de iluminação mística se dissolvam no ar. 

Concordo que de vez em quando acontece algo assim, mas, creiam-me, isto é um acesso eventual, e o processo normal da inspiração se dá por canais muito diferentes. Perguntar a um artista de onde vem a inspiração é como perguntar a um casal em lua-de-mel de onde vem aquela vontade de ficarem juntos o tempo todo. 

A inspiração não é um relâmpago eventual que cai quando menos se espera: é um estado permanente da alma, é uma condição mental que uma vez instaurada só pode ser revertida à custa de muita lavagem cerebral, muita discussão de besteira, muito trabalho tedioso, muito tempo desperdiçado com as irrelevâncias da vida.

O mais errôneo da pergunta, no entanto, é falsear o eixo da questão, ao sugerir que a inspiração “vem” até nós. É justamente o contrário. A inspiração é um estado mental auto-induzido. É um gesto da vontade. É uma decisão que tomamos: 

“Vou botar a cabeça pra funcionar. Vou pensar em coisas interessantes, vou examinar idéias que me atraem e me intrigam, vou começar a brincar com formas que me dão intenso prazer, vou criar variantes, vou criar comentários, vou criar respostas às coisas que estou vendo.”

Um dos meus pensadores preferidos, Colin Wilson, afirma (citando as teorias filosóficas de Husserl) que a consciência é um ato intencional. Ele a compara ao jato de uma mangueira dágua dirigido sobre os objetos. 

Quando estamos frouxos, esvaziados, deprimidos, olhamos para as coisas e elas não nos despertam nenhuma emoção, nenhuma idéia. Por que? Porque não são elas que têm de vir até nós. “Que tristes são a coisas” , dizia Drummond, “consideradas sem ênfase”. Somos nós que temos de dirigir para as coisas o nosso jato de vontade, de ênfase, de entusiasmo pensador e criador, embebê-las com toda a carga emocional de nossa memória e de nossa imaginação, encharcá-las com nossas emoções. 

Eu diria que o gesto artístico não depende de inspiração, e sim de “expiração”: ele é o sopro criador que dirigimos sobre as coisas inertes do mundo, transmitindo-lhes a vida que existe em nós, e somente em nós.





3 comentários:

Chico Lopes disse...

Gostei muito. Todo um lado de intenção na criação artística permanece oculto para esses perguntadores leigos que acham que o "santo baixa" de repente. Mas, sem usar a palavra "inspiração", eu diria que há sopros do inconsciente que nos movem na vida cotidiana e devem ser eles os responsáveis pelo mito. Já ouvi uma voz me ditando o nome de um conto no meio de um quase-sono (e era uma voz autoritária, a que só fiz obedecer) e outra me dando a frase final de um conto longo com que vinha trabalhando, e foi dentro de um ônibus!!! Certos mistérios existem, mas creio que ocorrem pra quem, como nós, vive imerso em leituras, em criações e eu, quando não estou escrevendo, estou pintando, agora que estou na aposentadoria...

Anônimo disse...

Vc estava muito bem inspirado quando escreveu esse artigo!

Anônimo disse...

A consciência é um ato intencional, e essa consciência está, inclusive, "fora de nós"...
É uma premissa da fenomenologia.