sexta-feira, 10 de outubro de 2008

0587) O quase-poema moderno (4.2.2005)




Os grandes criadores estabelecem um patamar de qualidade e de exigência muito alto para si mesmos, e acham natural exigi-lo de todos nós, meros mortais que tentamos bem ou mal pintar nossos quadros, dirigir nossos filmes ou compor nossas musiquinhas. 

É o caso de João Cabral quando teoriza sobre poesia. Seu olhar crítico é um furacão que, se passasse por aqui todo ano, não deixaria muita coisa de pé. Em sua análise intitulada “Da Função Moderna da Poesia”, Cabral assim descreve o chamado poema moderno: 

“... esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar.”

Sobreviveu, poeta? Eu também, mas foi por pouco. Cabral era um engenheiro exigente, desses que você solta ele no meio de qualquer rua de qualquer cidade, e para onde se vira ele só vê coisa errada. Seu nível de exigência é alto. 

Sua decepção com o “poema moderno” é compreensível. Eu sou o primeiro a botar a carapuça e admitir que a descrição acima corresponde a 90% da minha obra publicada. A solução é apelar para a vocação diplomática do Poeta e tentar chegar a um acordo de cavalheiros que aceite sua crítica, mas nos libere para continuar escrevendo.

Eu diria que comparar João Cabral comigo e com outros coleguinhas é como comparar Ayrton Senna e um sujeito que vai de carro pro trabalho. Um é um artista da pilotagem, um cara que define, para sempre, os rumos futuros desta arte. Outro é um cidadão que usa esta arte para resolver os problemas do seu dia-a-dia. 

Todo mundo tem o direito de dirigir, e o dever de dirigir o melhor possível, mas ninguém está se obrigando a imitar as proezas de Senna. No momento em que ele entrar numa corrida, no entanto, no momento em que ele for para uma pista de kart ou para um “pega” clandestino, aí ele está entrando no terreno do outro. Aí ele tem a obrigação de ter como parâmetros os parâmetros de Senna. Ele nunca vai conseguir, talvez, mas ele passou a correr em outra raia, na raia em que Senna corria, e aí a coisa muda de figura. Ele está competindo com o que Senna fez.

O mesmo se dá na poesia. O poema moderno, ou quase-moderno, liberou milhões de pessoas para escrever poesia. Fazemos e distribuímos poemas com os amigos, os colegas, a namorada; colocamos nos blogs, nos murais. 

Esses poemas são expressão individual nossa, são a respiração lírica de nossa pessoa. Ninguém pode nos negar este direito, ninguém pode proibi-los porque “não são bons poemas”. 

Mas no momento em que pisamos nas páginas das revistas, dos suplementos literários, no momento em que publicamos um livro... aí estamos pisando na raia de João Cabral. E é nessa raia que a crítica dele deve servir de alerta -- e de estímulo.







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