Quando lemos um poema na primeira pessoa, nossa primeira tendência é pensar que o poeta está sendo autobiográfico, confessional.
Acreditar que Pablo Neruda estava de fato na maior dor-de-cotovelo quando escreveu: “Posso escrever os versos mais tristes esta noite...”
Acreditar que Augusto dos Anjos remoía o sofrimento da morte do pai, quando escreveu: “Podre, meu pai... A mão que enchi de beijos / toda roída de bichos, como os queijos...”
Acreditar que Vinicius de Morais estava possuído por alguma paixão terna e luminosa quando principiou um soneto com; “De tudo, ao meu amor serei atento / antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto...”
São sentimentos expressos com tal espontaneidade e em frases tão consistentes que não há como não crer neles. E mais: são sentimentos que, em retrospecto, batem com o que sabemos da vida e da personalidade de quem os escreveu. Aquilo ali é autobiográfico, sou capaz de apostar.
O Eu lírico, no entanto, é muito mais mutante e surpreendente do que imaginamos. O que devemos pensar quando o mesmo Neruda nos diz: “Mesmo assim seria delicioso assustar um notário com um lírio cortado, e matar uma freira com um soco no ouvido”? Um episódio autobiográfico? Um sentimento real? Um sentimento imaginário?
E quando Vinícius diz: “Na mais medonha das trevas / acabei de despertar / soterrado sob um túmulo...” Um pesadelo? Uma fantasia mórbida?
O “Eu” que conta o poema pertence ao Poeta, mas é um Eu postiço de que ele pode lançar mão, quando quiser, para fazer brotar de dentro de si um sentimento. É muito parecido com o Eu do ator, quando encarna um personagem. Um ator que chora no palco está chorando de verdade, mas chora por uma tristeza que não é sua, embora a sinta.
Não é preciso estar apaixonado para escrever o mais belo poema de amor. Aliás, em geral a paixão verdadeira menos ajuda do que atrapalha, porque o sujeito tende a pensar mais nas pernas da mulher amada do que nos pés do verso que rabisca.
A verdade do Eu poético poucas vezes é autobiográfica, e nem sempre é emocionalmente autêntica. Poemas de imensa crueldade já foram escritos por indivíduos que tinham bom coração, mas se deixaram arrebatar por uma idéia mais forte que seus escrúpulos.
Alguns textos exprimem esse distanciamento necessário à escrita. Um deles é o poema de Drummond “Procura da Poesia” (“Não faças versos sobre acontecimentos...”). Fernando Pessoa escreveu fragmentadamente sobre isto, em suas idéias estéticas; há um texto intitulado “O problema da sinceridade do poeta” onde ele afirma: “O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir.” E nem Camões lhe escapa.
E por fim há dois textos em prosa de João Cabral que melhor do que qualquer outro dissecam esta questão: “Poesia e composição” e “Da função moderna da poesia”, que todo poeta devia ler uma vez por ano, como quem vai ao clínico geral.
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