O Natal se aproxima, com seu problemático coquetel de confraternizações e melancolias. Depois de uma certa idade, é o Natal que se transforma em nosso verdadeiro Dia de Finados. Por mais que a gente passe assobiando pelo tumular 2 de novembro, quando chega o Natal não tem remédio, a casa (ou pelo menos a memória) se enche de fantasmas. Estavam dormindo em paz nos oceanos do oblívio e lá vai a nossa saudade masoquista a despertá-los, trazê-los de volta à sala de visitas, para o milésimo flash-back dos tempos-felizes-que-não-voltam-mais.
Certa vez comentei aqui (“Uísque: cimento”, 31.7.2003) uma frase de Raymond Chandler que é talvez uma das mais cruéis que já se escreveram sobre esta data: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Chandler bem que tinha seus motivos para se arrepiar à simples audição de “Jingle Bells”. Viveu seus últimos dias na Califórnia, aquela mistura de shopping-center e zoológico humano, que provocava náuseas em seu lado aristocrático. Dizia ele: “As lojas estão cheias de um lixo inacreditável, e tudo que você procura já se esgotou. Pessoas com expressões tensas e agoniadas no rosto ficam examinando peças em vidro ou cerâmica, e sendo atendidas, se esta é a expressão correta, por débeis mentais que foram recrutados quando estavam em liberdade condicional do hospício, e que, se fizerem um enorme esforço, serão capazes de distinguir entre uma picareta e um bule de chá.”
Chandler tinha seus problemas. Sua mulher, Cissy, bem mais velha do que ele, teve uma longa e dolorosa doença pulmonar que acabou por matá-la em 1954. No final de 1951, Chandler escrevia ao seu agente literário Carl Brandt: “Tivemos um péssimo Natal. A cozinheira adoeceu, não fizemos peru, e minha mulher ou está de cama ou repousando a maior parte do tempo, tentando combater uma bronquite renitente. Swanie me mandou uma gravata de presente. É toda estampada com pequenos sherlock-holmes e pegadas sangrentas. Gostaria que os agentes de Hollywood não se sentissem obrigados a presentear seus clientes, até porque esses presentes são um termômetro muito fiel do status desses clientes. Um sujeito que chegou ao ponto de receber relógios de pulso e de repente volta a ganhar gravatas sabe exatamente qual está sendo sua cotação no mercado.”
Não, a culpa não é do Natal, é do que acontece no resto do ano. Em 1952, Chandler escreveria, desta vez para o crítico inglês Leonard Russell: “Minha mulher está muito doente. Ela já voltou do hospital, mas ainda está muito fraca e continua acamada. Por causa disto resolvemos esquecer o Natal este ano, inclusive os cartões. Então, deixe-me desejar a você e a Dilly Powell o que quer que ainda exista de paz e felicidade neste mundo triste: coisas como crepúsculos vermelhos, o cheiro de rosas após uma chuva de verão, tapetes macios em aposentos tranqüilos, a luz de uma lareira, a presença de velhos amigos.”
Feliz Natal para todos.
Certa vez comentei aqui (“Uísque: cimento”, 31.7.2003) uma frase de Raymond Chandler que é talvez uma das mais cruéis que já se escreveram sobre esta data: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Chandler bem que tinha seus motivos para se arrepiar à simples audição de “Jingle Bells”. Viveu seus últimos dias na Califórnia, aquela mistura de shopping-center e zoológico humano, que provocava náuseas em seu lado aristocrático. Dizia ele: “As lojas estão cheias de um lixo inacreditável, e tudo que você procura já se esgotou. Pessoas com expressões tensas e agoniadas no rosto ficam examinando peças em vidro ou cerâmica, e sendo atendidas, se esta é a expressão correta, por débeis mentais que foram recrutados quando estavam em liberdade condicional do hospício, e que, se fizerem um enorme esforço, serão capazes de distinguir entre uma picareta e um bule de chá.”
Chandler tinha seus problemas. Sua mulher, Cissy, bem mais velha do que ele, teve uma longa e dolorosa doença pulmonar que acabou por matá-la em 1954. No final de 1951, Chandler escrevia ao seu agente literário Carl Brandt: “Tivemos um péssimo Natal. A cozinheira adoeceu, não fizemos peru, e minha mulher ou está de cama ou repousando a maior parte do tempo, tentando combater uma bronquite renitente. Swanie me mandou uma gravata de presente. É toda estampada com pequenos sherlock-holmes e pegadas sangrentas. Gostaria que os agentes de Hollywood não se sentissem obrigados a presentear seus clientes, até porque esses presentes são um termômetro muito fiel do status desses clientes. Um sujeito que chegou ao ponto de receber relógios de pulso e de repente volta a ganhar gravatas sabe exatamente qual está sendo sua cotação no mercado.”
Não, a culpa não é do Natal, é do que acontece no resto do ano. Em 1952, Chandler escreveria, desta vez para o crítico inglês Leonard Russell: “Minha mulher está muito doente. Ela já voltou do hospital, mas ainda está muito fraca e continua acamada. Por causa disto resolvemos esquecer o Natal este ano, inclusive os cartões. Então, deixe-me desejar a você e a Dilly Powell o que quer que ainda exista de paz e felicidade neste mundo triste: coisas como crepúsculos vermelhos, o cheiro de rosas após uma chuva de verão, tapetes macios em aposentos tranqüilos, a luz de uma lareira, a presença de velhos amigos.”
Feliz Natal para todos.
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