sábado, 29 de maio de 2010

2091) “O Coração das Trevas” (20.11.2009)



Há quem diga que o século 19 terminou com a guerra de 1914-1918. Há também quem diga que ele se encerrou (e com ele a Era do Colonialismo) em 1899, quando Joseph Conrad publicou em forma serializada, no Blackwood’s Magazine, sua novela Heart of Darkness. O livro, de certa forma, sepultou qualquer resíduo de crença que um europeu sensato pudesse ter sobre os benefícios da cruzada européia para espalhar o capitalismo, a civilização e os bons modos por entre os povos selvagens do mundo. O que o livro de Conrad nos diz é que “o homem que nesta terra miserável vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. A civilização prevalece em seu próprio centro, mas quanto mais se afasta dele mais é impotente para vencer a selvageria. Não é que os homens civilizados sejam derrotados em batalhas pelos selvagens; é que eles próprios, quanto mais se afastam da civilização, mais selvagens se tornam.

Marlow, o narrador, recebe o comando de um barco a vapor e a incumbência de subir um rio, a partir da foz, em busca de um tal de Kurtz, encarregado de um entreposto comercial no meio da selva. Durante a viagem, fica chocado com a crueldade, avareza e mediocridade mental dos europeus que encontra, e com a degradação física em que vivem os negros. Quanto mais se aproxima de Kurtz, mais ouve histórias a respeito do seu carisma, da sua eloquência e dos seus nobres propósitos. Os indivíduos que o conheceram têm a impressão de ser ele um homem de personalidade notável. Ao mesmo tempo, circulam histórias contraditórias sobre sua ambição e seus métodos cruéis e implacáveis no comércio clandestino de marfim. O encontro de Marlow com Kurtz confirma as duas versões sobre este.

A maior parte das pessoas (eu, inclusive) tomou conhecimento da história de Marlow/Kurtz através do filme de Francis Coppola Apocalipse Now, que mantém grande parte do enredo de Conrad, transpondo-o para o século 20 e para a selva do Vietnam. Com Martin Sheen no papel de Marlow e Marlon Brando no de Kurtz; podemos dizer, também: “e com a Guerra do Vietnam no papel do colonialismo europeu do século 19”.

Kurtz é mais um dos heróis trágicos que, no transcorrer de uma demanda, se transformam em sua própria negação. Intelectual, pintor, artista plástico, orador de talento (embora só saibamos disso indiretamente, através dos testemunhos dos que o conheceram), ao mergulhar no coração das trevas ele se torna um carrasco dos indígenas, traficante, assassino, e se entrega a prazeres bestiais que são insinuados e sugeridos por Conrad. Marlow, que viaja centenas de quilômetros rio acima, enfrentando os selvagens, para resgatar Kurtz, deixa-se fascinar e horrorizar por esse europeu que, como em certos filmes de ficção científica, transforma-se pouco a pouco em monstro, e revela que a monstruosidade já estava no seu próprio DNA, já era a condição essencial da tarefa pseudo-civilizatória a que se entregou.

2090) Conselhos de Raymond Chandler (19.11.209)





(Chandler, por Michael J. Balzano)

Até hoje não sei o que é melhor em Raymond Chandler: se os seus romances policiais ou as suas cartas. 

A publicação das cartas de gente famosa é uma fábrica de anticlímaxes. Sua única utilidade, em geral, é provar a um zé-ninguém como eu que Fulano e Sicrano também não passavam de zés-ninguéns. 

Chandler é diferente. Suas cartas têm toda a precisão e originalidade que encontramos em seus livros, além de uma visão do mundo ao mesmo tempo amarga e compassiva. Chandler era um cínico afetuoso, um realista capaz de gestos românticos. E um escritor que sofreu e lutou para chegar a sê-lo.

No blog de Scott Westerfeld (http://scottwesterfeld.com/blog/?p=1889), alguns conselhos de Chandler (que começou a escrever aos 45 anos) aos escritores-em-botão. Numa carta de 1948, diz ele: 

Minha teoria é de que os leitores apenas pensam que o que lhes interessa é a ação. Na verdade, embora não saibam, ligam muito pouco para isto. O que os atrai, e me atrai, é a criação de emoção através de descrição e diálogo. O que eles lembram, e que não sai de sua cabeça, não é, por exemplo, que um homem foi assassinado, mas que no momento de ser morto ele estava tentando pegar um clip na superfície polida de sua mesa, e o clip escapulia dos seus dedos, de modo que havia uma contração no seu rosto e sua boca estava entreaberta numa espécie de sorriso tenso, e a última coisa que passava pela sua cabeça naquele instante era que iria morrer. Ele nem sequer escutou alguém batendo à porta. O maldito clip continuava escapulindo dos seus dedos e ele teimava em não querer empurrá-lo até a borda para fazê-lo cair sobre sua mão aberta.

Esses detalhes circunstanciais tornam uma cena algo único, e portanto algo mais vívido e mais verdadeiro. Leitor burro é inseguro, precisa encontrar a todo instante uma confirmação do que já sabe – se o cara que vai morrer é um milionário, por exemplo, ele não pode estar pegando um clip, tem que estar contando dinheiro, ou algo assim. 

O leitor inteligente sabe que muitos momentos de nossa vida se concentram assim, em detalhes totalmente insignificantes, que passam a significar não pelo que são, mas pelo foco que nossa atenção lhes concede.

Uma cena notável de Heart of Darkness de Conrad é quando o barco a vapor segue pelo rio e é atacado pelos selvagens; o timoneiro é atingido por uma lança no convés e Marlow, o narrador, agarra-o durante a queda. No momento seguinte ele sente que seus pés estão molhados e quentes, e percebe que está com os sapatos encharcados de sangue. Ele larga o corpo do timoneiro: 

“Eu estava morbidamente ansioso para trocar meus sapatos e minhas meias. (...) Puxei o cadarço, freneticamente. (...) Arremessei o sapato no rio, por cima da amurada”. 

Detalhes assim, paradoxalmente, tornam mais real a morte de um indivíduo (pela reação que provocam em outro), muito mais do que uma frase grandiloquente ou uma descrição melodramática.







2089) Um cotidiano à fantasia (18.11.2009)



A fotógrafa mexicana Dulce Pinzón abre no fim deste mês uma exposição em Nova York na qual retrata imigrantes mexicanos nos EUA executando trabalhos cotidianos com uniformes de super-heróis. Ela forneceu as fantasias e fez as fotos enquanto os mexicanos trabalhavam. Vai daí que vemos o Homem Aranha pendurado em cordas, limpando pelo lado de fora as vidraças de um arranha-céu; o Tocha Humana no balcão de um restaurante, flambando comida na frigideira; O Coisa empunhando uma britadeira numa construção civil; Batman com uma lanterna, no escuro de um estacionamento, iluminando o caminho para os clientes; o Incrível Hulk descarregando um caminhão de carga; o Super Homem fazendo entregas de bicicleta, a capa esvoaçando ao vento; a Mulher Gato servindo de babá para crianças louras; o Dr. Fantástico, o “homem elástico”, trabalhando de garçon, pegando um prato no balcão com um braço alongado e entregando na mesa com o outro.

Como se vê, as fotos são cuidadosamente ensaiadas e preparadas para “passar uma idéia”, harmonizando o super-poder de cada herói à tarefa de cada trabalhador. Diz a artista que os verdadeiros heróis são as pessoas que trabalham nos serviços simples do cotidiano, recebendo salários baixos e enviando parte deles para ajudar suas famílias na terra natal. As fotos podem ser conferidas aqui: http://tinyurl.com/yjnpewq.

OK, tudo não passa de uma encenação momentânea para produzir uma obra de arte. Mas isso alarga uma fresta importante em nossa cultura, fresta que talvez tenha sido aberta durante a década de 1960, com a Contracultura, o movimento hippie, etc. Naquele tempo, vigorava, na maioria dos países, uma certa padronização de roupas. Tenho fotos de meu pai em Campina Grande na década de 1940: cerca de cinquenta homens, numa solenidade de inauguração, ao ar livre, no pingo do meio-dia, todos eles vestindo ternos brancos. Hoje em dia, se você pegar um ambiente semelhante e pessoas semelhantes, cada um vai estar vestido como lhe apraz: manga de camisa, roupas de todas as cores. Alcancei o tempo em que caixa de banco não podia usar cabelo grande nem barba, e tinha que trabalhar de camisa social branca e gravata. Uma das imagens mais surpreendentes que me lembro de ter visto foi a da linha de montagem de uma fábrica inglesa nos anos 1980: uma porção de operários junto à esteira rolante, aparafusando peças, sendo que um deles é um punk com um gigantesco cabelo moicano pintado de roxo.

Chamo a isto uma tendência irreversível. As pessoas irão cada vez mais carnavalizando seu cotidiano, teatralizando suas indumentárias, indo ao trabalho, aos passeios ou ao cinema com roupas de super-herói ou “de personagem”. Sinais disso são o crescimento exponencial de decorações como piercings, tatuagens, etc. O mundo de daqui a algumas décadas será um baile à fantasia. Vou deixar prontos por aqui meu camisolão e cajado de Profeta.

2088) O suicídio do goleiro (17.11.2009)



(Robert Enke)

Os jornais desta semana estão cheios de comentários sobre o suicídio do goleiro Robert Enke, do Hannover e da seleção alemã. O jogador, de 32 anos, sofria de depressão sem dizer a ninguém, exceto à esposa. No dia 10 passado, ele parou seu carro perto de um cruzamento com a via férrea, deixou a porta aberta e caminhou até os trilhos, onde foi atingido pelo trem. A polícia e a família encontraram uma carta de despedida deixada por ele em casa.

Muitas vezes nos queixamos (eu inclusive) da “marra” ou da pretensão de muitos atletas, no futebol e em outros esportes. O futebol está “assim” de jogadores arrogantes, cheios de empáfia, que se consideram semideuses, sem falar nos que, por serem evangélicos, afirmam estar em contato permanente com Jesus e que é Jesus quem lhes proporciona os gols que fazem e os títulos que ganham. (O que me dá a impressão de que existem milhões de “Jesuses” por aí, cada qual patrocinando um jogador diferente.) A verdade é que sem inventar essas couraças protetoras nenhum deles resiste à enorme pressão que sofre. A gente se esquece às vezes do sacrifício que é para um rapaz (que em geral, no nosso futebol, vem de família humilde) para enfrentar a via-crucis das divisões de base, onde milhares são chamados para que meia dúzia deles sejam escolhidos. Arranjar um empresário. Conseguir teste num clube. Agradar o técnico. Encontrar espaço no elenco (formado sempre por “macacos velhos”, escolados, no meio dos quais o garoto de 17 vai ter que se afirmar). Discutir contrato. Dar entrevistas justificando qualquer bobagem. Ser aplaudido pela torcida. Ser vaiado pela torcida. Passar 90 minutos levando pontapés e cotoveladas de sujeitos tão determinados e tão a-perigo quanto ele próprio. E por aí vai.

Meus amigos cantores e músicos vivem se referindo à pressão de subir no palco, ao nervosismo de enfrentar platéias... Bobagem. Sei que é verdade porque sinto a mesma coisa, quando é o meu caso, mas num show o artista está diante de gente que saiu de casa para aplaudi-lo. Estou com esta idade e não me lembro de ter visto um show, entre os milhares a que já compareci, em que o artista saísse do palco embaixo de vaias e de bagaços de laranja. No futebol, isso acontece dia sim dia não.

Adriano, hoje no Flamengo, comentou, após a morte de Enke, o período difícil que teve a partir de 2004, quando, depois da morte de seu pai, começou a beber. Deixar o rígido futebol europeu e voltar ao Rio foi uma decisão criticada por parte da imprensa (“falta de profissionalismo”), mas em última análise deve ter sido uma decisão sábia. Existem momentos em que o sujeito está tão pressionado para mostrar desempenho que só dorme se beber. Se isto acontece até com intelectuais maduros, com um enorme acervo de desculpas filosóficas pré-moldadas, por que não com um rapaz de vinte e poucos anos, que só sabe correr atrás de uma bola? Não tem bola que valha uma vida.

2087) Dois gestos de nobreza (15.11.2009)





(Descartes e a Rainha Cristina)

Dizem os livros de História que o filósofo Diderot, um dos enciclopedistas franceses, vivia perseguido por problemas financeiros. A certa altura da vida, já famoso, precisou levantar dinheiro para o dote de sua filha, que iria se casar. Aperta daqui, aperta dali, em 1765 Diderot tomou a decisão de vender a biblioteca que tinha acumulado durante a vida inteira, e enviou cartas para seus contatos em toda a Europa, explicando sua decisão e aguardando ofertas. Um dia chegou-lhe às mãos uma carta de Catarina II, imperatriz de Rússia. Dizia ela que, sendo uma admiradora do filósofo, dispunha-se a comprar sua biblioteca pelo preço que ele solicitava. Havia apenas um porém: a imperatriz, por uma série de motivos, não podia providenciar a transferência imediata da biblioteca (alguns milhares de volumes) para Moscou. Precisava, portanto, contratar um bibliotecário de sua confiança para cuidar dos livros até que eles pudessem ser transportados para a Rússia. O bibliotecário receberia um salário anual pelos seus serviços. Por acaso Monsieur Diderot estaria interessado em ocupar esse cargo?...

De Diderot passamos para René Descartes, o famoso filósofo do “Penso, logo existo”, o inventor do eixo de coordenadas x e y (para mim a maior invenção humana entre a roda e a Teoria da Relatividade). Descartes era um filósofo meditativo, gostavava de dormir tarde e acordar tarde, o que dá uma medida de seu bom senso. Em 1649, já famoso em toda a Europa, recebeu a pior coisa que um homem sossegado pode receber: uma proposta irrecusável. Cristina , Rainha da Suécia, o queria como professor de Filosofia, e enviou um navio para trazê-lo a Estocolmo. A rainha tinha 19 anos, era culta, atlética, gostava de cavalgar no frio escandinavo. (O filme sobre ela, com Greta Garbo, é bom, mas considerado bastante fantasioso.) Instalou Descartes num palácio próximo ao seu, e determinou que ele lhe daria aulas diárias, começando às 5 da manhã, em pleno inverno sueco. Na corte, poucos nobres suportavam o ritmo da rainha, que dormia apenas cinco horas por noite. Descarte, com mais de 50 anos, não sabia como dizer não. Levantava-se todos os dias num frio mortal, tomava a carruagem que vinha buscá-lo, e dava aulas à rainha num salão gelado. (A descrição de Eric Temple Bell em Men of Mathematics é de cortar o coração.) Não durou muito: em fevereiro de 1650, morreu de pneumonia.

Estes episódios ilustram o que é a convivência entre os intelectuais e a nobreza. O intelectual geralmente é um sujeito de poucos recursos, sempre dependendo dos favores alheios. Os nobres (reis, príncipes, etc.) são como deuses: caprichosos, imprevisíveis, atemorizantes. Um desejo vira uma ordem, e ai de quem não a cumprir. Catarina da Rússia admirou Diderot o bastante para tirá-lo de uma situação financeira aflitiva. Cristina da Suécia talvez julgasse que estava fazendo o mesmo por Descartes.


2086) Machado e Nelson (14.11.2009)



Difícil encontrar dois indivíduos tão diferentes e tão parecidos. Ambos eram grandes fazedores de frases, cada um ao seu modo. Alguém já disse que uma frase é algo parecido com uma espada. Se assim for, a frase de Machado era um florete, a de Nelson uma katana de samurai. Viveram do jornalismo em épocas de jornalismos muito diferentes, mas todos dois herdaram do jornalismo a fluência, a aparente facilidade de escrever, o diálogo direto com o leitor, sem falar nos truques narrativos do folhetim.

Ambos eram fascinados pelo adultério, aquela vozinha incansável que lhes sussurra coisas de dentro do travesseiro quando estão tentando dormir. Para a maioria das pessoas o adultério é um perigo terrível mas remoto, como a possibilidade da queda do avião em que estamos ou de incêndio do prédio em que residimos. Para esses indivíduos especiais, no entanto, o adultério é fonte perpétua de deleite e tortura. A idéia do adultério próprio é um Paraíso sem Deus, onde o todo-poderoso é ele, com Eva ao seu dispor, e fazendo o papel de serpente e de folha de parreira. O adultério da companheira é um Inferno de Dante, com todos os Nove Círculos só para si.

Machado era pudico e Nelson era devasso, e cada um fez ao seu modo a crônica do pudor e da devassidão que os cercavam. Alguns leitores acostumados a emoções fortes criticam o pedestrianismo dos enredos de Machado, onde só acontecem coisas banais, domésticas, e os meros crimes de morte podem ser contados nos dedos. Por comparação, os enredos de Nelson são um prolongamento da página policial dos matutinos. Fervilham de tragédias e escândalos que fariam o Bruxo tremer, assustado com tal desvendamento de segredos que ele levava noites inteiras para encaixar nas entrelinhas.

Curiosamente, Nelson (que não praticou a poesia, ao que eu saiba) escrevia tão bem para o teatro quanto no romance, no conto, na crônica. Sua matéria-prima eram situações humanas, expostas através de ações e diálogos. Já Machado foi perfeito no conto e no romance, mas nunca consegui acreditar no seu teatro, e acho sua poesia meio fraquinha (eita, agora lá vêm 200 emails me excomungando!). Alguns sonetos aceitáveis; nenhum que seja classe A (sim, nem mesmo o da Carolina, o do Natal, o do vagalume).

Não sei se Nelson admirava ou desdenhava (e em que termos) a obra de Machado, cujo nome não é mencionado no índice remissivo de O Anjo Pornográfico de Ruy Castro. Talvez tivesse pelo autor de Dom Casmurro aquela admiração tácita de quem escreve bem por quem escreve bem, independentemente de afinidades; e uma dose encorpada de menosprezo por um sujeito que talvez lhe parecesse um fraco, um tímido, um “cauteloso pouco-a-pouco” na expressão de Mário de Andrade. Se compararmos as trajetórias de vida dos dois, a de Machado é um gráfico horizontal que só de longe em longe é perturbado por um estremeção. A de Nelson daria algo parecido com um resumo sismográfico do Japão nos últimos cem anos.

2085) Piadas comunistas (13.11.2009)



O humor é a melhor forma de resistência à opressão (às vezes, a única). A melhor época do humor brasileiro foi o período entre 1964 (o golpe militar) e 1985 (eleição de Tancredo Neves). Há diferentes razões para isso. O humor alivia a tensão de quem solta uma boa gargalhada. Ao mesmo tempo, desinfla e esvazia a pompa de quem quer parecer importante demais, poderoso demais. O humor é uma torção do discurso habitual, virando uma esquina imprevista: nada melhor, portanto, para revelar as contradições ou as falácias do discurso de alguém. O humor é basicamente cultura oral (com a devida vênia aos coleguinhas do humor gráfico), portanto nada melhor para sobreviver sem provas num ambiente repressivo, para se infiltrar por entre as junturas do sistema, para ser sussurrado “à sorrelfa, à socapa, à boca pequena” (como dizia Nilson) pelos becos e pelos botecos. Um dos aspectos mais arrepiantes e pessimistas de “1984” é a ausência de humor. As pessoas dali já estão num estágio tão avançado de repressão que desaprenderam a mangar dos tiranos.

Quem assistiu o ótimo filme alemão “A Vida dos Outros” deve lembrar a cena arrepiante em que um funcionário, num refeitório, conta uma piada satirizando o líder da Alemanha Oriental, e no meio da piada percebe que está sendo escutado (jovialmente, sorridentemente) pelo chefe da polícia política, que o encoraja a prosseguir. O cara conta de maneira chocha o fim da piada, e é rebaixado de função (vai ver que o chefe gostou da piada e o livrou do fuzilamento). Agora, estão emergindo os registros de espiões sobre piadas colhidas em cartas ou em telefonemas grampeados. A principal fonte são os arquivos de espionagem da Alemanha Ocidental, onde era recolhida qualquer informação que pudesse dar uma idéia do clima político do país comunista vizinho.

Há uma clássica, que já vi sendo aplicada a vários governos (inclusive o do PT): “O que aconteceria se o deserto do Saara se tornasse comunista? A princípio, nada, mas daí a pouco ia começar a faltar areia”. O desabastecimento e o racionamento são pesadelos do comunismo (e um pesadelo ainda maior para quem vive na superabundância de supérfluos do capitalismo, e teme ser rebaixado), por isso os alemães orientais afirmavam não descender do macaco, como o resto da Humanidade: “Um macaco não sobreviveria com uma cota de duas bananas por ano”.

A Stasi (polícia política) mantinha 91 mil funcionários e 189 mil informantes civis, vigiando a população dia e noite. Um artigo no Der Spiegel (http://tinyurl.com/yjdwgl2) comenta essa época. Para os alemães orientais, Chernobyl não passou de um programa do governo soviético para tentar submeter a população ao Raio-X. Outro alvo preferido do humor alemão era o Trabant, o precário automóvel que era o orgulho da indústria automobilística comunista. Dizia-se que o próximo modelo iria ser lançado com dois canos de escape em vez de um: “Assim ele pode ser usado como carrinho de mão”.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

2084) Um fato fantástico (12.11.2009)




H. G. Wells afirmou certa vez que uma história sobre um porco capaz de voar por cima das cercas era fantasia, mas se todos os porcos pudessem fazer o mesmo passava a ser outra coisa. 

Wells não definiu (pelo menos na citação que li) que outra coisa seria essa, mas talvez sua frase tenha sugerido a Anthony Boucher, um dos melhores críticos norte-americanos de FC (responsável pela primeira tradução de Borges nos EUA, em 1948) uma importante recomendação: 

“O autor tem direito a uma única premissa fantástica, que dará origem a toda a sua história. Ele pode usar uma pessoa capaz de atravessar paredes, mas não pode usar na mesma história outra pessoa que é invisível”. 

Um conselho perceptivo e sensato, embora grande parte da FC e da Fantasia contemporâneas se obstine em desobedecer a ele.


Wells escreveu romances sobre um homem invisível, uma máquina do tempo, marcianos invadindo a Terra, um médico que tenta transformar animais em seres humanos. Qualquer um desses livros é um primor de narrativa. Fico imaginando que salada seriam se o autor tivesse tentado escrever sobre um médico que tenta transformar animais em seres humanos invisíveis, ou sobre marcianos que invadem a Terra utilizando máquinas do tempo. 

Cada premissa fantástica estabelece uma “quebra” com o realismo narrativo. Cada uma propõe um mundo semelhante ao nosso com exceção de um aspecto, e apenas um. Quando os aceitamos, o restante da narrativa decorre numa espécie de comparação constante entre o mundo como o conhecemos e essa outra direção narrativa sugerida por aquele detalhe. 

Postular dois deles ao mesmo tempo é bifurcar a atenção do leitor, pedindo-lhe que vire ao mesmo tempo duas esquinas opostas, que aceite a existência de dois elementos improváveis e, mais do que isto, heterogêneos. É pedir-lhe que olhe em duas direções ao mesmo tempo.


Pego como exemplo um livro que tem esse defeito (não obstante ser um bom livro, envolvente, bem escrito), um dos meus preferidos na adolescência: O Dia das Trífides de John Wyndham (1951), que tem dois elementos fantásticos. 

O primeiro é a existência das trífides, plantas inteligentes, capazes de se mover sobre três “pernas” e dotadas de um aguilhão venenoso, que são uma ameaça para os seres humanos. Por sorte as trífides não enxergam. 

O segundo elemento fantástico é a ocorrência de uma chuva de meteoros que dura uma noite inteira. Na manhã seguinte, todas as pessoas que os contemplaram estão cegas. E então os seres humanos e as trífides ficam em igualdade de condições. 

Duvido que José Saramago não tenha lido a mesma edição que li (Colecção Argonauta, Lisboa), nos anos 1960, e que o livro de Wyndham não tenha inspirado seu Ensaio sobre a cegueira

O Dia das Trífides é um ótimo romance de FC sob vários critérios, e seu único defeito é a ocorrência de duas premissas fantásticas tão distantes (plantas inteligentes, cegueira coletiva) e tão convenientes para o autor. Bastaria uma.













2083) Nossos avatares (11.11.2009)



(Thomas Frey)

Os autores de FC e os jornalistas especulativos costumam se indagar até onde irá nossa capacidade de criar avatares de nós mesmos. Réplicas eletrônicas capazes de reconstituir nossa personalidade e de nos representar em público. Eu sou um conservador nato e não creio que será possível produzir um sósia holográfico de mim mesmo capaz de me substituir em tarefas como fazer o supermercado ou cortar o cabelo. Pra mim, o mundo feito de matéria só pode ser acessado por quem é de matéria, e ponto final. Mas admito que a expansão dos avatares ocasionará também (num processo cumulativo de causa e efeito) a expansão de um mundo em que esses avatares possam atuar.

Um dos otimistas é Thomas Frey, que num artigo online em http://www.futuristspeaker.com/2009/05/the-future-of-the-avatar/, intitulado “O Futuro do Avatar”, sugere: “Assim que um avatar passar pela metamorfose radical de uma imagem vista na tela para um ser tridimensional que nos acompanha no jantar, conduz conversações com nossos amigos e pode nos substituir numa reunião, começará o trabalho para produzir um avatar ainda mais realista, um que poderemos tocar fisicamente”. Creio que seja possível a projeção holográfica (como nos livros de William Gibson) de uma pessoa virtual, luminosa, semitransparente, capaz de aparecer (graças a projetores) andando entre os transeuntes de uma calçada, entrando num restaurante, sentando-se à mesa, ouvindo (porque microfones próximos captam as frases e as retransmitem para a “Central”) as perguntas que as pessoas de carne e osso lhe fazem, e respondendo-as (através de um software verbal, e de pequenos altofalantes estrategicamente colocados). Isso deve dar um trabalhão danado para realizar, e vai requerer alguns bilhões de terabytes (“uma Antártida de informação”, diz Gibson).

Não creio na possibilidade de um avatar informático capaz de apanhar e levar consigo uma folha de papel, girar a maçaneta de uma porta real, guardar uma moeda no bolso... O que podemos é produzir um andróide de carne-e-osso sintéticos, em cujo cérebro há um HD de alguns petabytes de memória recebendo em tempo real tudo que se passa em nossa mente. Desse modo, eu posso estar na minha casa, no Rio, descansando em meu quarto, enquanto meu avatar caminha pelas ruas de Campina Grande, cumprimenta pessoas, entra no sebo Cata-Livros para conversar miolo-de-pote com Ronaldo e pagar pelos livros com dinheiro virtual.

Qual a utilidade de avatares assim? Mandá-los à guerra para morrer em nosso lugar? Parece a piada do português que um dia estava sentado à beira da via férrea, distraiu-se, e o trem passou por cima da perna dele. Ele juntou dinheiro, um milhão de escudos, e implantou uma perna artificial. Aí noutro dia estava sentado de novo com as duas pernas em cima do trilho quando alguém gritou: “Manuel, lá vem o trem!”. Precavido, ele deixou sobre o trilho a perna de verdade e afastou a outra, murmurando: “Esta aqui me custou foi um milhão de escudos...”

2082) “Distrito 9” (10.11.2009)



O filme sul-africano Distrito 9, em cartaz na Paraíba, é um mix de novidade e clichê, crítica social e cinema descerebrado. Tem sido elogiado pela crítica como uma revolução no cinema de ficção científica. Gostei do filme, com muitas ressalvas. Ao que parece, ele surgiu de um curta-metragem, cujo sucesso levou o produtor/diretor Peter Jackson a bancar a sua transformação num filme longo, com toda a estrutura. Talvez aí tenham começado os seus problemas.

Distrito 9 começa com uma imagem que, criada por Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, rapidamente está virando clichê, tendo sido usada com mais impacto no famoso (e medíocre) Independence Day: uma imensa nave alienígena estacionada no espaço, imóvel e silenciosa, sobre uma grande cidade. No presente caso é Johannesburgo, a cidade do apartheid, e todo o filme é uma alegoria óbvia (mas não menos eficiente ou menos interessante por isso) sobre o modo como os negros foram tratados na África do Sul. Assim como ocorreu com eles, os alienígenas (que estão enfraquecidos, quase à morte) são recambiados para um curral-favela onde passam a morar.

A primeira metade do filme é excelente, resumindo uma situação complexa através de uma linguagem de jornalismo televisivo, com entrevistas, depoimentos, imagens de arquivos. Os ETs estão isolados numa favela na periferia da cidade, mas ninguém os quer por ali, nem mesmo os negros. O governo vai fazer a remoção dos milhares de ETs, derrubar seus barracos, para que eles vão morar num lugar bem longe, onde ninguém os veja – como nós aqui no Brasil tratamos os Sem-terra, os Sem-teto e outras espécies alienígenas.

Lá pelo meio do filme o protagonista, um típico “afrikaner” (descendente dos colonizadores brancos) se deixa contaminar casualmente por um líquido que encontra no barraco de um ET e começa a se transformar num deles, por um processo que não fica muito claro em momento algum. Isto empurra o filme para o reino da pulp fiction deslavada, onde a verossimilhança científica é o que menos importa, e os fatos acontecem de acordo com a conveniência dramatúrgica do autor. Daí em diante o filme vira um bang-bang comum, com perseguições, escapadas, tiros, muitos tiros, explosões, muitas explosões, e vai descendo pouco a pouco ao nível de um Independence Day ou Transformers qualquer.

É um mau filme? De jeito nenhum. Está cheio de pequenas sacadas brilhantes, de situações bizarras e plausíveis, de uma crítica social feita menos por ideologia do que por vivência, ou seja, uma crítica que se aprende a fazer nas ruas, e não nos livros. A narrativa da parte inicial mostra como é possível comprimir muita informação e um enredo complexo em pouco espaço; pretendo comprar um novo ingresso só para rever esta parte. Distrito 9 é excelente quando é um filme da África do Sul, e perde qualidade quando tenta ir atrás do que o cinema americano tem de mais bobo: tiros, muitos tiros, e explosões, muitas explosões.