sexta-feira, 15 de março de 2024

5042) Quatro crimes insolúveis (15.3.2024)

 


1
A polícia de Shanghai nunca conseguiu desvendar o mistério do criminoso que a imprensa veio a apelidar (com alguma impropriedade) de “Cerberus”. Na década de 1930, Shanghai era uma das cidades mais populosas do planeta, e conhecida (de acordo com um memorialista célebre) como “a Paris do Oriente, e uma das cidades mais pervertidas do mundo”. 
 
Em 1939, durante a invasão japonesa que subjugou a cidade, um pacote foi descoberto nos degraus de entrada da Prefeitura. Aberto, revelou três cabeças de cão, decepadas a faca, e amarradas umas às outras com arame farpado. O pacote macabro foi interpretado como uma ameaça às autoridades locais. Duas semanas depois, outro pacote idêntico foi descoberto junto à piscina de um clube para oficiais, no resort de Tsingtao, uma praia ao norte da cidade, ex-base naval alemã. Nenhum bilhete, nenhum indício de quem era o autor ou qual a finalidade daquele presente brutal. 
 
Outros pacotes ou caixas, sempre com três cabeças, surgiram em locais associados à elite européia e americana: na porta do exclusivo Shanghai Race Club (o hipódromo frequentado pela classe endinheirada), da Cathedral School (escola para meninos), etc. A imprensa passou a anunciar as novas descobertas (foram oito no total, entre janeiro e outubro daquele ano) como “Cerberus manda novo recado”. Os corpos dos cães sacrificados nunca foram descobertos, o que não era de surpreender, numa cidade cujos rios arrastavam o tempo inteiro cadáveres de soldados. As entregas pararam bruscamente, e especula-se que o autor ou autores possam ter morrido nas escaramuças diárias entre japoneses invasores, chineses invadidos e militares do Ocidente. 
 
 



2
Permanece insolúvel o mistério dos envenenamentos em série ocorridos em 2003-2004 em restaurantes de Nápoles, Salerno e Pescara. Tudo começou com um pico inesperado e inexplicável de mortes, em diferentes pontos das cidades, de pessoas de todas as classes sociais, tendo como único fator em comum o envenenamento por cianeto de potássio. Cruzamento de informações pela polícia revelou que todos haviam se alimentado com comida doada ou descartada por vários restaurantes: eram mendigos, pedintes, parentes ou amigos dos cozinheiros, que recebiam restos de comida não consumida pelos fregueses, ou internos em casas de caridade que recebiam doações de comida dos próprios restaurantes. 
 
A polícia chegou à conclusão de que uma pessoa ou pessoas desconhecidas, após pedir uma refeição, deixava aparentemente intacta na mesa uma certa quantidade (lasanhas, bifes, etc.) que envenenava sem ser percebida, e essa comida era depois repassada para alguém. “Crueldade pura,” desabafou à imprensa o Comissário Castellani, da polícia napolitana, “porque é impossível saber quem iria consumir aquilo; um desses casos de maldade sem objetivo certo, onde a motivação não é ódio nem a vingança, é o puro prazer de fazer o mal”. 
 
A única pista relativamente plausível que chegou às mãos da polícia foi uma carta enviada a um jornal de Pescara (onde houve quatro mortes ao longo de dois meses), sem data, sem assinatura, numa caligrafia que os grafólogos atribuíram a “uma mulher adolescente, de pouca instrução”, alegando que tinha envenenado as refeições porque sua mãe morrera depois de comer comida estragada numa pizzaria; mas o remetente nunca foi identificado, e a polícia atribuiu a missiva a uma pessoa com desequilíbrio mental. 
 
 


3
A Scotland Yard fez de tudo para deixar em banho-maria o caso arquivado “em aberrto” sob a alcunha de “The Time Crimes”. 
 
Em agosto de 2013, o notório contrabandista Snatch Florian foi encontrado apunhalado num quarto de hotel londrino. A polícia examinou a faca, ainda cravada em seu corpo, e localizou impressões digitais bastante claras. Houve um momento de perplexidade quando descobriu serem de David Stong, contabilista de uma quadrilha do West End, morto num acidente dois anos antes. 
 
A investigação deu num beco sem saída até que em abril de 2014, em Birmingham, apareceu morto o pistoleiro Vic Mulroney, numa casa abandonada que lhe servia às vezes de esconderijo, e na arma que o matou foram encontradas impressões de Snatch Florian. A polícia teceu hipóteses, como a de que as duas armas tinham sido manuseadas pelos bandidos e depois guardadas por alguém para serem usadas num crime posterior e desviar suspeitas. 
 
Mas em novembro de 2015, em Liverpool, num crime que atraiu as atenções da imprensa, a cabeleireira Sandra Lindsay apareceu morta a facadas; descobriu-se que era chantagista; que tinha passagens na polícia; e que a arma do crime exibia as impressões digitais de Vic Mulroney. Não houve como esconder do público a evidente (conquanto absurda) relação entre os três crimes.
 
Seguiram-se meses de acaloradas polêmicas, marcadas pela perplexidade dos investigadores diante das aparente improbabilidade do caso, até que em junho de 2016, em Newcastle-upon-Tyne, o servidor público aposentado Zachary Hunnan apareceu morto num beco ao lado de um pub em Chinatown, e a polícia rapidamente identificou na arma as impressões (já esperadas, por alguns) da cabeleireira Lindsay. 
 
A realização do referendo relativo ao “Brexit” fez com que este último caso fosse pouco divulgado, e a última declaração pública da Yard a respeito foi do investigador-chefe Westford, que declarou: “Felizmente, o padrão dos crimes indica que quem tem que se preocupar com isto agora são os escoceses”.




 
4
O Ladrão do Vale incomodou e assustou a classe média carioca nos anos finais da década de 1950. Atuando sempre na Zona Sul do Rio, ele tinha como alvo principal jóias e obras de arte, geralmente roubadas quando a família estava viajando. 
 
Seu primeiro caso registrado pela polícia (suspeita-se que houve mais algum antes, sem que as vítimas prestassem queixa) ocorreu em 1958, em Copacabana, quando um pequeno quadro de Portinari, bastante valioso, foi roubado da mansão Costa Miranda, na rua Toneleros, e a família achou em seu lugar uma folha de papel pregada na parede com os dizeres: Vale um Portinari
 
Um mês depois, também em Copacabana, no apartamento da viúva Dóris Lencastre, um colar de rubis e ametistas, do tempo do Império, sumiu de seu cofre, mas foi encontrado um papel com as palavras Vale o Colar da Marquesa de Santos. Investigações subsequentes provaram que essa informação estava correta, sendo que nem a dona do colar conhecia essa procedência. 
 
O terceiro caso foi no Leblon, quando sumiu da residência do general da reserva Soscígenes Oberwald um espelho vitoriano triplo, dobrável, engastado de pedras preciosas, dando lugar a um bilhete: Vale um espelho triplo com 18 pedras, sendo duas falsas.   
 
Ao todo, foram oito furtos num espaço de dois anos, sempre na Zona Sul, e sempre sem deixar pistas além de um “vale”, uma janela forçada, um vidro quebrado, pequenos detalhes que a nada conduziram. O mercado de leilões e o mercado negro de objetos de arte foram vigiados durante muitos anos, mas nenhuma das peças reapareceu. Os “vales” ficaram em poder da polícia carioca. 
 
 





5 comentários:

Fraga disse...

CLAP, CLAP, CLAP!

CORINTIANO VOADOR disse...

Esclareça: os "vales" eram manuscritos, datilografados, compostos com tipos de jornal, outro meio?

Braulio Tavares disse...

Corintiano: eram manuscritos, em letras de imprensa, com material da própria casa assaltada, caligrafia nunca identificada.

denise bottmann disse...

"Os corpos dos cães sacrificados nunca foram descobertos, o que não era de surpreender, numa cidade cujos rios arrastavam o tempo inteiro cadáveres de soldados" - mais provavelmente foram comidos; carne de cachorro é prato multissecular na china, não?

Braulio Tavares disse...

Denise, boa lembrança... Devo tê-los comido mesmo, e nem me lembro.