Um espectro assombra a literatura brasileira desde que ela começou: o espectro do “falar difícil”. Num país que em 1920 tinha cerca de 70% de analfabetos, e não possuía nenhuma universidade, a prática da literatura era um nítido diferencial de classe. (Não que os analfabetos não praticassem suas formas literárias – a literatura oral, os contos populares, os cantos, os versos, os romances recitados, a própria literatura de cordel, cujo grande nome, Leandro Gomes de Barros, morreu em 1918.)
Por ali passavam tropas mineiras d’além-Paranaíba – rijos tocadores palmilhando as alpercatas de couro cru pela extensão ardente e arenosa das estradas poentas, ladeadas às vezes de barrancos escarpados e esfarinhentos de pedra-canga, por cujas erosões, vincadas, medrava tenaz o catingueiro parasitário dos morrotes. Por ali passavam, barulhentos e ralhadores, de peregrinações distantes, após haver trilhado as rechãs esturradas d’argila vermelha e sapé bravio dos chapadões, onde apenas, a quebrar a uniformidade dos horizontes, apareciam de vez em vez, ao longo dos carris profundos deixados à passagem pela roda ferrada dos pesados carros de bois, a fronteira do lobo e os coqueiros de macaúba, como tênues, fugaces teias de sombra espalmadas sobre a crosta recozida do solo. (W. Martins, p. 70)
“Poento”, aliás, é um adjetivo euclidiano que Ariano Suassuna confessadamente assimilou (ele se refere a isto em seu discurso de posse na A.B.L.).
O cinzento selenial dos horizontes, a negrura obsidiânica de certos pauis; a transparência hidrofânica das neblinas pairando sobre os altos cabeços longe; o lento lacrimejar das estrelas, triste como a dolorosa marcha fúnebre de Chopin; o brazido avernal dos estios; a beleza dos estendedouros das campinas; as ondas dos ventos frios arrepiando a pele da água voluptuosa; as barcaças maciças, pesadas, movidas pelas zingas; o arredondado zimborial do firmamento; a grandeza zenital das esperanças da minha Pátria; os beijos tímidos das lavandeiras pelos velhos campaniles; a bombinela da noite a descerrar-se para surgir o fulgor do sol levante; todas estas coisas vistas ou sentidas através dos canais, impressionam e fazem vibrar poderosamente a minha energia sensorial.(W, Martins, p. 158)
Sussurram ainda as trovas brejeiras dos simplórios campônios, nos festins seqüentes ao mourejar diurno, nos roçados esmeraldinos de minha terra; balam, mansuetos, os lanígeros pelas várzeas; cambalhotam, endiabrados, os caprinos pelas quebradas sáxeas e gemem as fontes múrmures queixas de despedida em rumo do mar longínquo, ao grimpar céleres os socalcos de jusante... O luar dos sertões infiltra uma suave melancolia no psiquismo desses modernos Anteus, cuja grandeza de labor secular contra os caprichos da terra e contra as cruezas do éter desafia rivalidades!(W. Martins, p. 248)
Não há conjugado mais poderoso, devassando os segredos da vida, catalogando, seriando, na escala dos hidrocarbonetos, com o metro, a proporcionalidade das progressões aritméticas formando o encadeamento dos corpos cíclicos e acíclicos; coordenando, compondo, concertando, atando e desatando, com uma regularidade surpreendente, a prova de algarismos – os dez que nem mil todo-poderosos cíngulos dígitos do Grande Ser, que empolgassem as formas concretas do universo, na tarefa de as enumerar, multiplicar, dividir e subdividir. Quando esta molécula se complicou, tivemos um caos bíblico, que não a desordem, pois o magno coordenador, o carbono, não o permitira, logramos porém uma página harmônica da vida do globo, que não soubemos deletrear, porque não pudemos fixar em o nosso entendimento a equivalência de suas expressões, o eco de suas ressonâncias.(W. Martins, p. 307-308)
Um comentário:
Muito bom!
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