Dr. Valdir não era doutor na
origem; era só Valdir, cinco ou seis anos mais velho do que eu, também torcedor
do Treze, também apreciador da nobre arte da cerveja gelada e da moela com
farinha. Tinha uma lojinha de ferragens agrícolas na Rua João Suassuna, não
muito longe da Praça Félix Araújo. Era do sertão, das bandas de Brejo do Cruz. Um
daqueles migrantes que nunca voltaram para a cidade natal. Não que queimassem
as pontes por onde passaram; as pontes o tempo levou, e eles não tinham como
construir outras.
Nas noitadas etílico-filosóficas
comendo meio-galeto no Bar de Benedito, Valdir dizia, apertando meu ombro, quando o olho já estava
penso:
– BT, essa cidade me acolheu
como se já me conhecesse. – Ele gostava de uma frase altissonante. – E eu caí
nos braços dela como se já a amasse.
Ficamos mais amigos ao descobrir
que éramos leitores de revistas de contos policiais como Suspense ou X-9, grandes sucessos da Rio Gráfica
Editora nos anos 1960. Trocávamos exemplares de vez em quando. Eu gostava mais
dos crimes enigmáticos; ele curtia as noveletas de detetives particulares
contra mafiosos e contrabandistas de uísque. E nada nos escapava nas Edições de
Ouro: Shell Scott, Johnny Liddell, Mike Shayne, Erle Stanley Gardner.
Lembro ainda hoje dos olhos dele,
arregalados, quando tirei da pasta um exemplar do Poema Sujo de Ferreira Gullar, recém-lançado, e mostrei os versos
imortais, onde o poeta se refere ao pai, encostado no balcão do armazém onde
trabalhava:
Não seria correto porque
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) – ele meio debruçado
no balcão lendo X-9...
– Tás vendo, Valdir? Revista boa todo
mundo gosta.
– O pai do poeta lia revista
policial! No mundo tem de tudo e mais um
pouco.
– O negócio é ler o que gosta,
rapaz, e não ter preconceito.
– Claro. Eu leio, e um cara de
vasta cultura como você lê também.
Valdir foi criado em roça, acunhando
enxada, fincando estaca de cerca, pastorando bezerro. Aprendeu a ler meio na
marra, com o que tivesse de coisa escrita por perto. “Eu gostava de ler propaganda de remédio,” disse ele uma vez,
morrendo de rir, “porque era um otimismo
da porra, tudo acontecia bem, ali! Eita
mundo belo.”
Veio pra Campina com uns vinte
anos, trabalhou de balconista em várias lojas, até casar com uma filha do dono
e acabar herdando a loja. A loja era a vida dele: a loja, a família (com uns
filhos que eu mal conhecia), a farra e as leituras.
E uma vez ele anunciou, quando o
encontrei no São João, numa barraca do Parque do Povo:
– Passei no vestibular aos 58
anos, e estou fazendo Direito.
– Já era tempo de fazer alguma
coisa direito na tua vida.
– Estou achando uma beleza.
Descobri que minha vocação não é o comércio, é a aplicação da justiça de todos
para resolver os problemas de cada um.
Ele gostava do fator
altissonante, e iria dar um bom advogado. Era ligado, não comia gato por lebre, não
tinha “vasta cultura” mas tinha a inteligência das relações humanas, coisa que
sempre me faltou. Ainda penso que o livro policial pesou um pouco nesse seu projeto
meio tardio. Ele certamente alimentava uma vaga fantasia de se ver numa sala de
júri fazendo com Vital do Rêgo ou Agnelo Amorim o que Perry Mason fazia com o
promotor Hamilton Burger.
Rimos, farreamos, peguei o trevo
rumo a minha vida e ele à dele. Alguns
anos sem nos vermos, mas me chegou aos ouvidos que ele estava formado, e cheio
das atividades. E um dia, em nova passagem por Campina Grande, preciso ir ao Forum
para assinar alguma coisa, resolver alguma pendenga burocrática. Na saída, ao
passar num corredor olho para dentro e vejo uma espécie de ante-sala com sofás
majestosos e quadros a óleo na parede. E três caras conferenciando em voz
baixa, de pé, no centro da sala: Valdir e mais dois.
Cheguei à porta e um rapazote
com olhar ansioso de estagiário estendeu o braço:
– Um momento, eles estão em
reunião agora.
– Tudo bem – disse eu. – Quero
somente uma palavrinha rápida com Dr. Valdir.
– Ele já vai atendê-lo – disse o
rapaz, caprichando na ênclise.
Deu alguns passos até o grupo,
cochichou alguma coisa; quando Valdir ergueu o rosto e me viu na porta, seus
olhos brilharam.
– Dr. Valdir?... – falei, bem
alto. – Passei só para lhe dar um boa-tarde.
Não aconteceu o estardalhaço
costumeiro. Ele inflou o peito, cerimonioso, pediu licença aos colegas e
caminhou compassadamente na minha direção.
– É uma honra a presença do
intelectual Braulio Tavares! Colegas, já conhecem?
Me abraçou formalmente, mas
satisfeitíssimo, me apresentou: Doutor Fulano, Doutor Sicrano... Cumprimentei
todos, trocamos amenidades, ele pediu licença aos outros, despedimo-nos e
saímos para o corredor.
– Obrigado pelo “doutor” –
disse. – Lá fora eu dispenso, mas aqui dentro todo mundo sabe que eu vim do
grotão, e meu dever é mostrar a eles que o grotão sabe o que faz.
– O título confere respeitabilidade, não é?
– Eles querem respeitabilidade; eu quero respeito. E título é
como revólver, se a gente mostrar que tem, talvez nem precise usar.
– Eu não vejo problema –
respondi. – Pra mim é como chamar cafetina de madame.
– Mês passado, sabe quem eu
encontrei, na porta da sala do júri, cheia de gente? Um primo da minha esposa,
que eu não via há anos. E ele gritou de longe: “Diz, cachaceiro!”
– Eu dava voz de prisão no ato –
comentei.
– O sal dele tá se pisando.
Soube que a mulher dele quer se separar, e se eu pegar essa causa vou deixar
ele sem fogão nem geladeira.
Pegamos o carro dele (era ainda
o mesmo carro azul-marinho de anos atrás, com o escudo do Galo no parabrisa.) e
fomos tomar uma. Ele disse a certa altura:
– Doutor é quem tem doutorado.
Não esqueça disso. Mas nesse ninho de cobras, quem facilitar é engolido. Tá
cheio de gente boa, mas tem uns caras aí que parece que estão com um sacarrolha
enganchado no cu, e só sai se alguém chamar de “doutor”.
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