quinta-feira, 30 de março de 2023

4927) Terry Pratchett e a literatura infantil (30.3.2023)



(Terry Pratchett) 

Muita gente diz que literatura infantil é uma mina de ouro, talvez por ser uma espécie de literatura obrigatória, que os professores indicam e os pais têm a obrigação de comprar (quando podem, é claro). 
 
Por outro lado, é uma literatura que arregala os olhos, porque o nível de ilustração e de projeto gráfico, aqui no Brasil, é realmente muito alto. Sempre que levei meus filhos pequenos para a “bibliotequinha” que (felizmente) nossas livrarias insistem em manter, nunca lamentei a meia hora ou uma hora em que fiquei sentado ali junto. Não dava para ler livros inteiros, mas eu fazia um mergulho intensivo na arte da ilustração. 
 
Terry Pratchett não é propriamente um autor infantil, mas sua série de fantasia “Discworld” vendeu dezenas de milhões de livros no mundo inteiro e acabou passando às mãos de milhões de crianças, atraídas pelo seu lado imaginativo, pela fantasia, pelo humor.


Numa entrevista de 2004, ele faz algumas colocações interessantes, e começa por um fato crucial. Geralmente a gente diz que em livro infantil não pode ter sexo, não pode ter palavrão, não pode ter violência excessiva, não pode ter discurso de preconceito... 
 
Tudo isto é uma verdade relativa, claro. Livros para pré-adolescentes podem e devem abordar o sexo, mais cedo ou mais tarde, porque é algo que vai entrar na vida dos jovens, queiramos ou não, e provavelmente algo que eles já conversam na escola ou entre as turminhas de amigos. Os livros não podem fazer vista grossa. (E também ninguém é obrigado a falar disso em todo livro.) 
 
Violência é outro aspecto, porque se tem uma coisa que criança gosta é história de suspense, de perigo, de perseguição, de fuga... Difícil fazer tudo isso sem pelo menos sugestões de violência. Os desenhos animados estão cheios disso, o cinema, a TV, os joguinhos. O livro é a mesma coisa – sempre com o desconfiômetro ligado. (Se eu já antipatizo violência desnecessária em livro adulto, muito mais em livro infantil.) 
 
Mas Terry Pratchett vai mais além dessa vigilância da moral e dos bons costumes. Ele tenta entender a psicologia do leitor infantil, o modo como o garoto ou a garota decifram o livro e interpretam o universo complexo que está sendo mostrado (no caso dele, o universo de Discworld, um mundo meio medieval onde a mágica funciona.)




Uma primeira coisa é: o leitor jovem tem menos informação sobre o mundo. Ele sabe menos coisas sobre o mundo do que o autor do livro, não por ser bobinho, mas por não ter tido tempo de aprender. Pratchett (que morreu em 2015) diz que isso não se dá apenas com crianças. Quando escreve para adultos, ele tem consciência de que os adultos jovens já nasceram em outro mundo, um mundo com outras prioridades e outro ranking de importâncias. 
 
Diz ele, numa entrevista à revista Locus (# 520, maio 2004, trad. BT): 
 
Por exemplo, no meu livro Soul Music (1994) há uma piada que envolve os Blues Brothers, e a esta altura há toda uma geração de leitores jovens que não fazem a menor idéia de quem foram os Blues Brothers, e não estão nem aí para eles. Piadas menores desse tipo perdem a atualidade; as piadas mais profundas são as que perduram. Eu digo: “Não importa em quem você votar, o maldito governo vai acabar mandando nele.” Isso é atual tanto agora quanto daqui a dez anos.
 
Todo tipo de referência excessivamente datada, localizada, tende a envelhecer com rapidez. Muitas vezes o autor quer pegar carona, meio sofregamente, nos assuntos do momento. Cinco anos depois o assunto do momento será outro. Quem vendeu vendeu, quem não vendeu não vende mais – a não ser que o livro tenha outros méritos. 
 
Diz Pratchett:
 
Em geral, os editores de livros para crianças se envolvem muito mais, querem acompanhar o livro desde o começo da escrita, trocar idéias. E o autor precisa saber o que está fazendo. Uma criança não traz para a leitura a mesma bagagem trazida por um adulto qualquer, e talvez não seja capaz de “ligar os pontos” de algo que é narrado. Leitores adultos viveram (em maior ou menor grau) as mesmas experiências que eu vivi, leram os mesmos jornais, ouviram os mesmos noticiários ao longo da vida. Mas o mundo gira, e a cultura se modifica. Quando o autor vai ficando velho, precisa ficar mais atento. O mundo, hoje, está cheio de adultos que não sabem dizer os nomes dos quatro Beatles; mas não é por burrice. Quando a gente escreve para pessoas de outra geração, tem que abrir o olho. 


Pratchett era da minha geração (dois anos mais velho do que eu) e ele deve ter passado em algum momento por aquele instante desacorçoado em que a gente pensa: “Quanto mais eu envelheço, mais desinformados ficam os jovens.” É natural, porque há uma substituição contínua de “tempos presentes”, e os jovens querem se embeber, se ensopar, se encharcar do presente.
  
 
Ele relaciona alguns detalhes que considera importantes no “olho de leitor” infantil.
 
Crianças são leitores muito apegados à lógica. Tudo que eles querem é a explicação, e pode ser em uma frase. Mas eles precisam ver a frase, e saber que você pensou nesse detalhe. Eles fazem perguntas que um adulto não faria – por exemplo, “E o que aconteceu com tal ou tal personagem secundário?...” Eles querem saber se no final tudo ficou resolvido. Gostam das coisas certinhas.    
 
Pratchett fala de sua experiência, é claro. Apesar de ter suas obras traduzidas em mais de 40 países (no Brasil, inclusive), seu feedback mais imediato é com as crianças da Inglaterra, seu país natal, e não por acaso um país com uma literatura infantil de alto nível há no mínimo um século e meio. 
 
Em todo caso, é bom lembrar que Pratchett fez um dia essa distinção:
 
“Um europeu diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado comigo?, enquanto um norte-americano diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado com o autor?”.
 
É como se as crianças fossem européias, e ao crescer se tornassem norte-americanas.