Agatha Christie foi meu primeiro amor, na adolescência,
mas acho que acabei casando com Ruth Rendell, uma paixão mais madura. Explico:
são duas grandes damas da literatura policial, e nada seria mais injusto do que
tentar estabelecer uma hierarquia de qualidade ou de valor entre elas. São
intocáveis, cada uma em seu plano de realidade.
Sobre Dame Agatha
não preciso falar muito, mas Ms. Rendell é menos conhecida, embora uma boa
quantidade de livros seus já tenha sido traduzida no Brasil, principalmente os
seus romances detetivescos tendo como protagonista o Inspetor Wexford. É como
contista, no entanto, que eu a prefiro, e a toda hora estou lendo e relendo
suas histórias densas, precisas, onde ela comprime um crime mórbido, ou uma
complexa investigação criminal, em uma dúzia de páginas numa prosa límpida,
controlada, rica de nuances.
São contos de crime, contos de investigação detetivesca,
contos de clima aterrorizante mas não-sobrenatural, contos de ódio reprimido,
contos de vingança, contos de ambição mortal.
Cada história tira da cartola uma situação inusitada. Uma
dona de casa descobre que seu jovem vizinho gosta de se vestir de mulher quando
está sozinho em casa (“The New Girl Friend”). Um homem aceita um convite para
jantar na casa (distante) de um ex-empregado a quem despediu, e o que deveria
ser um jantar de reconciliação começa a ganhar contornos ameaçadores (“A Bad
Heart”). Uma mulher deixa o carrinho com o bebê no jardim enquanto vai buscar
algo dentro de casa, e na volta o bebê desapareceu. Ou melhor: foi trocado por
um bebê desconhecido. Por quê?! (“Ginger
and the Kingsmarkham Chalk Circle”).
Casais em crise (namorados impulsivos, ou cônjuges
ressentidos) aparecem volta e meia em suas histórias, configurando aquela
tragédia grega e inevitável dos tempos modernos – onde o leitor adivinha o
desfecho, só não sabe quem será o executante e quem a vítima.
Um dos aspectos que me agradam nos contos de Ruth Rendell
é que ela tem uma percepção quase telepática de como funciona a mente
masculina, ou pelo menos um certo elenco de mentes masculinas. (O que me lembra
uma frase que vi numa peça há muitos anos, uma mulher dizendo: “Os homens são
insuportavelmente previsíveis”).
Um conto que estive relendo e me deu o que pensar foi “Uma
Atividade Paralela” (“An Outside Interest”, em The Fever Tree and Other Stories, 1982; no Brasil, Uma Agulha para o Diabo). O narrador, na primeira
pessoa, começa assim (trad. BT):
Amedrontar pessoas era um hábito que eu tinha. Talvez eu devesse dizer que era uma obsessão, e que não eram propriamente quaisquer pessoas, mas mulheres. (...) Juízes, policiais, carcereiros, fiscais da alfândega, cobradores de impostos... Eles se divertem muito, não é verdade? Você não os vê abrindo mão de seus métodos ou adotando outros. Não, o hábito de causar medo lhes sobe à cabeça, eles ficam inebriados, vivem só para isso.
Eu pensava às vezes como devia ser a sensação de uma mulher andando sozinha através daquele bosque e, sim, eu me rejubilava da minha masculinidade, e de ser livre do medo.
Uma noite, o camarada está dando sua caminhada e se aproxima
casualmente de uma mulher que caminha adiante dele. Ela apressa o passo, de
saltos altos, desajeitada. Ele, sem pensar direito, faz o mesmo, e algo
acontece nele.
Eu podia sentir o cheiro do seu terror. Ela usava bastante perfume e o suor o tornava mais forte, de modo que primeiro me chegou uma lufada, e depois toda uma onda de um odor animal misturado com perfume de flores. Aspirei com força, enchi os pulmões.
Ele não ataca a mulher; deixa que ela se afaste, mas está silenciosamente eufórico.
Não consigo descrever a sensação de poder que me invadiu, e a sensação de, bem, masculinidade triunfante e do que chamam machismo. Eu me sentia grandioso. (...) Já que pretendo ser totalmente sincero neste relato, devo acrescentar outra consequência daquilo que ocorreu no bosque, mesmo sendo contra minha índole mencionar coisas dessa natureza. Fiz amor com Carol nessa noite e foi muito melhor do que estava sendo ultimamente; para ser sincero, foi algo sensacional, para ambos.
Sou um homem bem casado, pai de um garoto, um metro e oitenta de altura, não tenho má aparência, e, posso garantir, sou um indivíduo física e mentalmente normal. (...) A aventura não é um elemento conspícuo na minha existência. A coisa mais emocionante que já me aconteceu foi quando pensamos que um dos nossos voos havia sido sequestrado, na Grécia; mas depois descobrimos que foi um alarme falso.
Deixei que ela fugisse. Não lhe causei nenhum mal. Pense no alívio que ela deve ter sentido quando percebeu que tinha escapado de mim e estava em segurança! Pense em como ela voltou para casa e contou tudo a sua mãe, ou sua irmã, ou seu marido! Pode-se dizer até que eu lhe fiz algum bem. Talvez tenha lhe mostrado que não era uma boa cruzar sozinha o bosque, e assim a protegi de um verdadeiro pervertido, algum molestador de mulheres. É um ponto de vista válido, não é? Posso mesmo me considerar um benfeitor público.
Carol quis saber como eu tinha dado um jeito de ficar com a roupa toda suja de grama, e acho que ela pensa até hoje que eu estava rolando nos gramados do parque com alguma outra mulher. Como se eu fosse capaz!
2 comentários:
Muito bom
Excelente. Fiquei com vontade de reler Ruth Rendell. Mais uma vez, muito obrigado mestre Braulio! Poucas coisas me dão mais prazer que "garimpar" em seus textos no blog. Grande abraço. Thiago
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