domingo, 24 de abril de 2022

4816) Os delírios barrocos de Terry Gilliam (24.4.2022)



Em janeiro, participei de um evento produzido no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), que neste momento está em cartaz no CCBB de São Paulo, e deve seguir depois para Brasília: Terry Gilliam – O Onírico AnarquistaO evento é produzido pela BLG Entretenimento, com curadoria de Christian Caselli e Eduardo Reginato, e fica no CCBB-SP até 2 de maio.

Fiz uma “Aula Magna” online (que infelizmente não está na web) e contribuí para o catálogo com uma avaliação do filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus.


Como a palestra não foi vista por muita gente, aproveito para compartilhar aqui alguns dos temas sobre os quais conversamos por duas horas.
 
Terry Gilliam é um estadunidense apóstata, que chutou o balde da cidadania dos EUA e tornou-se cidadão britânico. Ele sempre foi mais europeu do que norte-americano, assim como Isaac Asimov sempre foi mais norte-americano do que russo. A formação cultural de Gilliam, meio eclética, meio desorganizada, acabou tendo o efeito colateral de aproximá-lo mais da cultura européia do que da do seu país. Seus filmes e sua trajetória pessoal refletem isso.
 
Os adjetivos mais frequentes para descrever o cineasta são exagerado, “over”, gastador, complicado, exuberante, caótico... E ao mesmo tempo fascinado pelo absurdo, pelo nonsense, pelo fantástico, pelo sobrenatural, pelo grotesco, pelo mórbido.


(Time Bandits
 
Seus filmes são concebidos de fora para dentro, das imagens para a psicologia, do exterior surpreendente para o interior imprevisível. O ambiente, a cenografia, os figurinos, tudo parece mais real do que a mente dos personagens, que só raramente são tratados com um detalhamento psicológico realista, do tipo que o cinema habitualmente faz.  Gilliam pensa por imagens, não por conceitos abstratos.
 
Seus diálogos em geral não têm muito brilho, sutileza, originalidade. São meramente funcionais, servem para dar realismo à cena (“o que pessoas de verdade estariam dizendo num momento assim?”), para encaminhar o enredo, dar informações, exprimir emoções simples. Ele gosta de soltar os atores para improvisar suas falas. O que lhe importa é o movimento do storyboard, as linhas digitadas são uma formalidade necessária.
 
Fala-se que muitas cenas do Dr. Parnassus com Heath Ledger não teriam entrado na versão final, porque não ficaram muito boas, mas depois da morte do ator Gilliam decidiu aproveitar ao máximo o material que ele tinha filmado. A cena dos dois casais no restaurante chinês, em O Pescador de Ilusões, foi totalmente improvisada, e a edição picotada valorizou os trechos mais engraçados.


(O Pescador de Ilusões
 
Como acontece com diretores de temperamento visual, seus filmes são muitas vezes uma sucessão de “set pieces”, cenas que valem por si mesmas sem que necessariamente haja uma relação de causa e efeito entre elas. Gilliam daria um excelente carnavalesco de Escola de Samba, porque criaria umas vinte alas de brilho excepcional, sem se preocupar muito em contar uma história – o enredo tanto poderia ser “A Busca do Eldorado nas Américas” quanto “A Construção de Brasília”.
 
Isto faz com que, em termos de enredo, ele tantas vezes aborde os romances populares que não se preocupam com aprofundamento psicológico, e consistem numa série de aventuras semelhantes que poderiam ser acumuladas indefinidamente, como as do Barão de Munchausen, os contos dos Irmãos Grimm, as peripécias do Dom Quixote... Mesmo quando existe um objetivo final na jornada (como em Bandidos do Tempo, Jabberwocky, etc.) quando ele é atingido acaba sendo quase um anticlímax, porque entendemos que a festa acabou. A festa é a “travessia”.


(Jabberwocky
 
É a velha estrutura da Novela de Cavalaria, episódios sucessivos sem desenvolvimento orgânico entre si, sucessão de aventuras, como se fossem contos. Estrutura resultante de milênios de compilações de lendas e contos populares justapostos, desde as Mil e Uma Noites até os Contos de Canterbury, e que começaram a receber a partir do século 17-18 um tratamento mais refinado (O Manuscrito de Saragoça, Jacques o Fatalista, Tristram Shandy etc.) até desembocar no romance moderno, que se apoia em enredos sólidos, consecutivos, onde tudo que ocorre influi em tudo que ainda vai ocorrer.

Gilliam é um diretor visionário, meio delirante, e não é de admirar que as filmagens de seus projetos sejam aventuras cheias de acidentes, prejuízos, contratempos, conflitos, rompimento de contratos, mudança imprevista de planos...
 
É locação interditada em cima da hora, é surpresa meteorológica, é greve de uma categoria, é incêndio de cenário, é ator que morre durante a filmagem, é produtor que some com a grana... Como se diz por aí, no mundo caótico do cinema o surpreendente não é que um filme resulte em algo bom, é que qualquer filme acabe sendo feito.
 
Mesmo assim, ele tem um núcleo de técnicos e atores que embarcam sem hesitar nessas “roubadas”, certamente porque veem nele a sinceridade e a vibração dos que estão focados na vertigem de criar. Para quem trabalha com cinema, os filmes dele talvez sejam mais interessantes de filmar do que de ver na tela. Ver um filme dele é como ver as fotos de uma festa que durou três dias e onde rolou de tudo, até briga.









 
 
 








Um comentário:

Eduardo Toledo disse...

Os catálogos culturais do Banco do Brasil são sensacionais. Pena que essa mostra não chegou aqui em Porto Alegre. Para quem ficou com curiosidade de ler o texto do Bráulio para o catálogo do Terry Gilliam segue o link https://ccbb.com.br/wp-content/uploads/2022/01/Catalogo-Terry-Gilliam.pdf