Olha que beleza de tradução para o título do filme de Luís Buñuel La Mort En Ce Jardin (1956). Os catadores de lêndeas me enviarão telegramas expressos, caríssimos, informando que gramaticalmente deveria ser “A morte neste jardim”. Acontece que no filme, que acabo de ver pela primeira vez, tem muita morte, e jardim nenhum: é só um enfeite poético.
Um dos prazeres de quem vê um filme de Buñuel, mesmo os
que ele fez de maneira mais indiferente, no México, é descobrir aqui e acolá as
imagens buñuelescas, que lembram o surrealismo.
Uma das mais fortes deste filme é a imagem da cobra que é
morta e comida pelos fugitivos, quando estão a ponto de morrer de fome. Buñuel
mostra uma imagem da pele vazia da cobra, depois do repasto, coberta por uma
colônia fervilhante de formigas vermelhas.
Na fuga, eles encontram os restos de um avião caído na
jângal. Encontram comida e bebida (champanhe quente, bebida no meio dos
mosquitos). E roupas. É quando vemos Simone Signoret, que até então estava
enlameada, desgrenhada, roupa em farrapos, surgir com vestido negro decotado,
vestido de noite, coberta de jóias e diamantes achadas entre os defuntos da
aeronave. Esta cena (e seu desfecho) é uma das mais buñuelescas do filme
inteiro.
Em suas memórias (Meu
Último Suspiro) Buñuel recorda elogiosamente uma pequena cena escrita por
Raymond Queneau, que infelizmente “dançou” na montagem final. Djin, a
prostituta, vai fazer compras no armazém. Pede isso, aquilo, e uma barra de
sabão. Nesse instante, recebem a notícia de que um batalhão do exército está
chegando à vila, para sufocar a rebelião. E ela diz: “Não, peraí, me dá seis
barras.” Com a vila cheia de soldados,
claro, o trabalho vai aumentar.
A relação “tapas e beijos” entre ela e o aventureiro
Shark me lembrou a dos personagens de Julie Christie e Warren Beatty no McCabe and Mrs. Miller (1971) de Robert
Altman, que vi dias atrás. É a atração-com-atrito entre homens e mulheres
explorados, calejados, meio ingênuos, meio canalhas. Personagens complexos, como
os que a gente encontra em qualquer zona do baixo meretrício; muito além dos bons-e-maus
do folhetim e dos dramas “sociais” com intenções doutrinárias.
A certa altura, um personagem começa a queimar cartões
postais para alimentar a precária fogueira que eles acendem no meio da
floresta; um cartão-postal de Paris à noite se anima, vemos as luzes piscando,
os faróis dos carros em movimento.
E no instante seguinte lá vai o postal para
o fogo. Como a coroa de espinhos em Viridiana
(1961), como o violoncelo em O Anjo
Exterminador (1962). Simbolismo da civilização sendo destruída pela
barbárie? Buñuel dava de ombros para o simbolismo. As imagens dele iam direto ao
inconsciente coletivo. Todo “simbolismo” é racionalização a posteriori, é tentativa de domesticação do relâmpago que nos
inquietou.
Alguns críticos dizem que este filme é um dos menos
interessantes de Buñuel. Como tantos outros de sua fase mexicana, é um filme de
ação constante, narrativa bem encadeada, personagens que suscitam um permanente
interesse. Falta-lhe talvez o anarquismo e o niilismo dos seus grandes filmes
surrealistas.
Buñuel recorda em suas memórias:
Durante a rodagem de La Mort En Ce Jardin, junto ao lago de Catemaco, o chefe da polícia local, que limpara vigorosamente toda a região, ao ver que o ator francês Georges Marchal gostava de armas e de tiro, convidou-o, como se tratasse de algo perfeitamente natural, para uma caça ao homem. Era preciso ir no encalço dum assassino conhecido. Marchal recusou com horror. Algumas horas mais tarde, vimos os policiais passarem e o chefe informou-nos negligentemente que o assunto já estava encerrado.
(Luís Buñuel, O Meu Último Suspiro, Lisboa, Distri Editora, trad. Maria Helena Santos; p. 228)
Um comentário:
Grande Buñuel...
Outro dia assisti ao "A Adolescente"/"The Young One" (1960) e me surpreendi com um filme sobre racismo e pedofilia. O tema angustiante, mas o filme consegue atravessar sem ser explícito ou sensacionalista. O Google o classificou como "Aventura" (por qual motivo?), mas garanto que é muito mais espinhoso e sufocante do que sugere o categoria.
Eu não sei se você o viu - não achei sua análise no Mundo -, mas recomendo muito. É curioso que seja tão pouco falado.
Abraços
Brontops
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