Vi o filme de Alfonso Cuarón em streaming pelo Netflix. Meus amigos diziam que só presta ver no cinema, na tela grande, e eu concordo, porque a tela grande é um dos principais elementos da concepção estética do filme. (Vi no computador, mas meu monitor é muito grande.)
O filme conta o
dia-a-dia de uma empregada índia na casa de uma família de classe média
mexicana, em 1970. Diz-se que é a memória autobiográfica do diretor Cuarón, que
na história seria representado pelo garoto Paco. O filme é fotografado num
preto-e-branco excepcional.
Por mais que eu admire
fotografia a cores, sempre acho que o preto-e-branco nos dá uma versão mais
direta da realidade. As cores, no cinema, são como os adjetivos na escrita. O P&B nos
dá a imagem substantiva da vida, sem enfeite, sem comentário, sem ketchup.
A protagonista, Cléo (Yaritza Aparício),
é uma daquelas índias silenciosas que parecem ter sido arrancadas de uma
pirâmide mexicana na selva. Poucas cenas do filme não a têm como foco. É
silenciosa, diligente, observa tudo.
Na cena em que vai
para o quarto com o namorado (e engravida), ela o observa encantada enquanto
ele, nu, faz proezas de artes marciais. Depois, ela vai procurá-lo no subúrbio,
onde ele se exercita. Vê que ele é apenas mais um no meio de tantos. Que é tão
machista e bitolado quanto os outros. E não percebe que ela mesma é a única que
consegue praticar a pequena façanha de equilíbrio proposta pelo instrutor. Como
diria algum espectador brasileiro, Cléo é ninja e não sabe.
A família é mais uma
família na perpétua crise que é a subida de status das classes médias, onde
todo sacrifício tem que ser feito trincando o dente e sem bater a pestana. Tem
um Fusca guardado nos fundos, mas o dono da casa desembarca (numa cena memorável)
num Ford Galaxie que mal cabe na garagem.
Uma família que me
lembrou a canção de Caetano Veloso e Torquato Neto, “Ai de mim, Copacabana”,
contemporânea (1968) da família de Cuarón:
Um dia depois do outro
talvez no ano passado, é
indiferente,
minha vida, tua vida,
meu sonho desesperado,
nossos filhos, nosso Fusca,
nossa boutique na Augusta,
um Ford Galaxie,
o medo de não ter um Ford Galaxie...
(Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=PFh3VJMl01o)
Quando o marido
arranja uma aventura e vai embora, o Ford Galaxie vira um trambolho,
engaveta-se nos caminhões, esboroa as colunas da garagem, até que a esposa tem
um momento de lucidez, “desapega”, e o troca por algo mais realista.
A imagem
cinematográfica de Cuarón é enorme, um retângulo desmedido, maior do que um
Galaxie. Daí o olhar vagaroso da câmara, como uma jibóia despertando, aquela
profundidade de campo e amplitude de visão que faz de cada plano uma composição
complexa de coisas que se aproximam e se afastam, se deslocam.
Muita gente por aí
chamando o filme de lento, porque hoje em dia ninguém parece estar acostumado a
planos de um minuto. Ou é no ritmo de comercial de cerveja, ou "é arrastado, dá
sono”.
A estética adotada
pelo diretor é correta, e fazer montagem rápida, de planos picotados, com uma
imagem daquelas dimensões é como tentar jogar ping-pong usando uma bola de
basquete.
A câmera se liberta, e
de maneira magnífica, naqueles longos travellings laterais nas avenidas da
Cidade do México, reconstruída com aparente perfeição (que sei eu da Cidade do
México em 1970!). Há um momento de rara descontração das duas empregadas,
apostando corrida até a lanchonete; e depois (no mesmo sentido, da direita para
a esquerda), o trajeto angustiado de Cléo tentando alcançar os garotos que
correm à frente, de noite, rumo ao cinema.
Cléo é sempre a responsável
por tudo, por crianças que são crianças e desobedecem o tempo todo.
Um cinema onde o
garoto Paco vê o pai (que deveria estar no Canadá!) correndo às gargalhadas ao
lado de uma mulher jovem. E corta para a cena de Marooned, o astronauta solto, perdido, vagando no espaço.
Esses deslocamentos de
câmera prenunciam uma das cenas mais marcantes, o movimento (desta vez da
esquerda para a direita) acompanhando a entrada de Cléo no oceano, sem saber
nadar, para resgatar as duas crianças que estão sendo puxadas pelas ondas. Pelo
que se diz, uma sequência cheia de cortes, edições, superposição de imagens,
mas tudo em benefício de uma aparente continuidade de tempo e espaço, uma
brilhante construção de suspense e angústia.
Cléo é inescrutável. Já
disse alguém que “todo chinês tem mil anos”. A gente “lê” nessa índia maia ou
asteca como lê aqueles planos intermináveis de Greta Garbo. O que conta naquele
silêncio é o que ele consegue despertar dentro de quem o observa.
Mais uma vez Caetano
& Torquato:
Você olha nos meus olhos e não vê
nada...
Assim mesmo é que eu quero ser
olhado.
Como efeito de
contraste, a patroa é inquieta, cheia de tiques, transparece a todo instante o
caos interior que a faz tremer. A situação a transformou numa “síndica do naufrágio”,
e ela tenta se sair como pode.
Dizem (no Internet
Movie Data Base) que Cuarón, na sua obsessão de reconstituir a própria
infância, mandou trazer de várias partes do México, da casa de parentes seus,
móveis iguais aos que havia na casa de seus pais, e os utilizou na cenografia.
O filme é dedicado a “Libo”, Libória, a babá que cuidou dele e dos irmãos na
infância.
(Libória Rodríguez e Alfonso Cuarón)
É um mundo cruel e
carinhoso, o das babás, porque a única maneira de aguentar aquilo e não
endoidecer é amando aquelas crianças alheias, que muitas vezes acabam sendo as
únicas crianças que terão na vida. Como no verso do repentista Canhotinho, de Taperoá, cantando com Lourival Batista:
Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram.
(Elísio Félix, "Canhotinho", 1913-1965)
3 comentários:
Perfeito, Braulio. O Cuarón ia gostar de ler! Abrrr.
Os filmes bons estão cada vez mais raros. Aqueles no tempo/espaço certo!
As crítica excelente como a sua também estão cada vez mais raras!
com ela, me lembrei do chiste do Samuel Fuller: "O colorido é bonito, mas o preto e branco é mais real." Abs. Homero
Magnífico texto, o seu!
Abraços do
Paulo Mendes, Recife
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