quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

4436) Jorge Luís Borges nos EUA (20.02.2019)



(Anthony Boucher)

Se o proverbial arcanjo realizador de desejos me oferecesse a possibilidade de passar uma tarde inteira tomando um vinho e batendo um papo com um autor (falecido) de ficção científica e romances policiais, o nome de Anthony Boucher (rima com “voucher”) certamente estaria na minha lista.

Falei meses atrás sobre a primeira tradução de Jorge Luis Borges no EUA, que foi feita por ele:


Boucher (1911-1968) foi um dos nomes mais importantes na literatura policial e de FC nos EUA, embora tivesse uma atuação mais de bastidores do que sob os holofotes. Como editor, crítico, antologista, tradutor e autor.

Quando traduziu para o inglês “El Jardín de Senderos que se Bifurcan” (“The Garden of Forking Paths”), em 1948, Boucher mantinha há anos uma campanha em favor de uma ficção popular de entretenimento – o policial, a FC – escrita com a mesma consciência literária e a mesma riqueza da alta literatura. Que ele tanto apreciava.

Boucher foi uma criança doente (sofria de asma) que ficava muito tempo na cama e lia muito (como Stevenson, como Bram Stoker). Sofreu dos pulmões a vida inteira; seu filho Lawrence White diz: “Ele nunca teve na vida um só dia que se pudesse chamar um dia normal de saúde.” Escreveu, traduziu, editou, era fã de ópera (tinha um programa de rádio a respeito), colecionador de discos, fã de futebol e basquete, cozinheiro, conhecedor de vinhos.

Como crítico, era exigente, mas tinha sempre uma palavra de incentivo. Philip K. Dick jamais esqueceu suas palavras de apoio no início da carreira.

Era um crítico exigente, de opiniões claras, bem humorado e bem informado. Cultivava um discreto não-conformismo. Era católico, e talvez tenha sido o primeiro no romance policial a criar uma freira detetive, a Irmã Ursula, que aparece, entre outras histórias, em O Enigma da Túnica Amarela (“Nine Times Nine”, 1940).

Pelos registros que existem, foi Boucher quem apresentou o nome e os contos de Jorge Luís Borges a seu amigo Frederick Dannay, o editor-em-chefe do Ellery Queen’s Mistery Magazine, que publicou Borges em 1948.


(Frederick Dannay)

O estilo editorial do EQMM previa que novos autores, fossem estreantes, fossem traduzidos, tivessem seus contos precedidos por apresentações redigidas por Dannay. Dannay era a metade cerebral do pseudônimo “Ellery Queen”: ele concebia crimes intrincados, em escaletas rigorosas e cheias de minúcia, e a outra metade, seu primo Manfred B. Lee, escrevia o romance, com diálogos, ação, descrições, etc.

Ao apresentar na revista o conto de Borges, “The Garden of Forking Paths”, Dannay escreveu em 1948:

É nossa crença, há muito tempo, que Anthony Boucher reúne as três maiores qualificações que pode ter um tradutor: ele próprio pratica a escrita criativa; ele é sem dúvida um crítico cheio de criatividade; e por último mas não por menos, ele é possuído daquele entusiasmo furioso que só pode descrito como “apaixonado”. Em resultado disto, o sr. Boucher traduz histórias estrangeiras de ficção detetivesca com inegável autoridade. O estilo original do autor, sempre tão difícil de capturar em palavras estrangeiras, surge plenamente; entendemos a essência do enredo e as luzes e sombras da atmosfera e da caracterização...

Foi o sr. Boucher quem teve a idéia de traduzir “The Garden of Forking Paths” e de persuadir o autor a inscrever a história no Terceiro Concurso Anual do EQMM. Somos gratos ao sr. Boucher em sua dupla função de parteiro de mistérios; sem isso, nenhum de nós iria ter o prazer de ler o que o sr. Boucher considera ‘um pequeno clássico’.

À sua maneira bem peculiar, “The Garden of Forking Paths” é exatamente isso: uma obra-prima em miniatura. A história toda se baseia numa tremenda, numa colossal coincidência. Sem dúvida, como o leitor irá descobrir, a coincidência é de tal escala que não é simplesmente um meio para `resolver a história: ela é a história. E a rica sessão de exibicionismo que reveste a idéia básica vem somar de modo incalculável à ousadia da concepção do autor.

O Señor Borges é uma importante figura literária na Argentina – poeta, crítico, ensaísta e antologista. Em toda sua obra, especialmente em sua ficção, o autor emprega o tema do labirinto –é uma monomania persistente, que retorna com pequenas variações, como (o sr. Boucher nos recorda) as muletas nas pinturas de Salvador Dali. Em “The Garden of the Forking Paths”, o tema labiríntico do Señor Borges atinge sua plena expressão.

A obra do Señor Borges revela outra mania persistente: ele revela um apreço desproporcional pela erudição fictícia. Ele é capaz, por exemplo, de inventar um autor completamente apócrifo, ou um movimento literário inteiro, e escrever uma longa e saborosa dissertação sobre a importância esotérica dessa figura ou desse movimento; mas a fantasia e a sátira que ele entretece às suas opiniões críticas não são sempre destituídas de relevância. Num dos seus ensaios mais brilhantes, intitulado “Exame da Obra de Herbert Quain”, lê-se o notável parágrafo abaixo:

‘Já contei que seu primeiro romance é uma história de detetive, O Deus do Labirinto. Devo acrescentar que a editora pôs o livro à venda nos derradeiros dias de novembro de 1933. Na primeira semana de dezembro, as árduas e agradáveis circunvoluções de O Mistério dos Irmãos Siameses de Ellery Queen passaram a preocupar Londres e Nova Iorque; prefiro atribuir a essa desastrosa coincidência o fracasso total do livro de nosso amigo. E também (quero ser completamente sincero) às suas insuficiências técnicas e a pompa frígida e oca de certas descrições marítimas. Depois de passados sete anos, é impossível para mim recordar os detalhes do enredo; mas eis aqui o seu esboço, na medida em que minha memória o empobrece (e talvez o purifique). Há um assassinato indecifrável nas primeiras páginas, uma vagarosa discussão do crime no trecho mediano, e uma solução nas folhas derradeiras. Depois que o enigma é solucionado, há um longo parágrafo retrospectivo que contém a frase: “Todos imaginaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora por acaso.” Esta frase nos permite compreender que a solução estava errada. O leitor inquieto retrocede aos capítulos iniciais e então descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular prova, em última análise, ser mais perspicaz do que o detetive.”

Vocês agora sabem o que devem esperar!

Em termos do judicioso e erudito Dannay, não se poderia desejar melhor recomendação.

Alguns comentários ao comentário dele:

1) Fica implícito que houve pelo menos uma troca direta de cartas entre Boucher e Borges, para que este fosse convencido a se inscrever no concurso internacional promovido pela revista. Também foram incluídos nesse número especial contos de George Simenon (Bélgica), Victor Palla (Portugal), Anton Chekhov (Rússia), Karel Capek (Tchecoslováquia), Gabriele D’Annunzio (Itália) e outros, no número 57, volume 12, do MMEQ, de agosto de 1948.

2) Comparar as idéias fixas de Borges com as de Dali (as muletas) não é a primeira coisa que nos ocorre, mas não deixa de ter fundamento.

3) No conto original de Borges lê-se de fato essa referência a O Mistério dos Irmãos Siameses, de 1933, mas Borges não diz que o autor é Ellery Queen; provavelmente para não evidenciar demais a homenagem embutida no nome Herbert Quain.







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