Terminei de ler, ou reler, O Corcunda de Notre Dame (Nossa Senhora de Paris), de Victor Hugo.
É um dos livros da minha infância, e um dos poucos dos quais ainda conservo o mesmo exemplar que tinha lá em casa,
seis décadas atrás. (Edigraf, São Paulo, 1958, sem indicação do tradutor).
Eu sempre pensei que tinha lido o livro todo, porque a
vida inteira eu sabia trechos quase de cor – trechos que reconheci agora, no
momento em que os relia. Diálogos, frases engraçadas, frases retumbantes,
descrições específicas. Mas agora percebo que dificilmente eu teria atravessado
aquilo tudo, mesmo tendo sido um leitor razoavelmente precoce.
Resumo: uma mulher humilde, do interior, tem uma filhinha
pequena a quem adora. Um dia a filha é roubada por um grupo de ciganos, que
deixa no lugar dela, meio por crueldade, um bebê-aleijão, com o corpo todo
deformado, e poucas chances de sobreviver. Quem salva o bebê é um padre muito
devoto e erudito que o adota e o cria como filho. Esse menino deformado é
Quasímodo; ele se tornará sineiro e guardião de Notre Dame, sob a proteção de
Cláudio Frollo, o arcediago. A menina raptada pelos ciganos passa a ser chamada
de Esmeralda; vai se transformar numa mulher involuntariamente sedutora, e
causar a desgraça deles dois.
Qual o gênero do livro? Realismo, romantismo, gótico,
histórico, folhetim, barroco? Dizem que
um livro bom é um livro que explode essas rotulações, um livro que nenhum
rótulo abarca por inteiro, e não vejo melhor exemplo do que este.
Me lembro de viver agarrado com o livro e também de assistir
o filme de Jean Delannoy, com Anthony Quinn (Quasímodo) e Gina Lollobrigida
(Esmeralda). Lembro cenas inteiras até hoje; e fiz um poema intitulado “O Homem
Elefante passeia pela praia de Ipanema” (em O
Homem Artificial, 1999), que é um “poema sonhado” (e escrito ao acordar)
com imagens do filme.
Victor Hugo tinha 29 anos quando escreveu este romance, e
só acredito nisso porque li em mais de um lugar.
É um romance engajado, um romance militante, um romance
que defende uma ideologia. Hugo estava escandalizado com o “bota-abaixo” da sua
Paris dos anos 1820 (o livro saiu em 1831). Escreveu sua história para defender
a arquitetura tradicional, que estava, como a do Rio de Janeiro de hoje, sendo
demolida pelo falso progresso ou deixada apodrecer pela corrupção.
Alguns dos capítulos mais brilhantes (como “Paris a vol d’oiseau”) talvez sejam ilegíveis
para o leitor de hoje, criado numa dieta de frases curtas como grãos de alpiste,
e de narrativa onde têm que acontecer ações físicas o tempo todo. O capítulo é
um voo de drone sobre a Paris daquele tempo – ou melhor, a Paris de 1480 vista
pela imaginação de um escritor na Paris de 1830.
O lado folhetinesco pode fazer torcer o nariz de algum
leitor cansado de histórias sobre bebês raptados que reencontram (sem saber) os
pais na vida adulta. Idem com as mortes trágicas, espantosas, com extensas
perorações dos personagens.
Era um tempo em que você dava a um personagens uma fala
de duas ou três páginas e não aparecia nenhum Manual de Redação e Estilo para dizer que estava errado. Ainda bem.
Hugo tem um talento exuberante, transbordante, chega
quase a ser descontrolado. Um terço do livro, ou mais, parece ser composto de
digressões longuíssimas, até reconhecermos que o tema do livro não é o
pentágono amoroso entre Esmeralda, Quasímodo, o arcediago Cláudio Frollo, o
capitão Phebo e o poeta Gringoire.
O tema do livro é a cidade de Paris, com foco na catedral
de Notre Dame, e a vida desse elenco de personagens é o pretexto para fazer
essa cidade do século XV erguer-se inteira do fundo do mar da História, como
uma Atlântida resgatada.
Hugo pavimentou o caminho para todo o romance parisiense que
se seguiu, desde os peculiares realismos de Balzac e Proust até a Paris
folhetinesca de Ponson du Terrail, Michel Zevaco, Maurice Leblanc. O livro é um
mapa histórico e um GPS da cidade inteira.
Pouco importa que Balzac tenha considerado o romance “um
dilúvio de mau gosto”: me parece que Balzac, como Machado de Assis, fazia o
possível para fugir ao que havia de gótico e de melodramático dentro dele
mesmo. Hugo vai neste livro desde a
sala-de-visitas bem machadiana (o namoro de Phebo com Flor-de-Lis) até o
submundo infra-humano do Pátio dos Milagres, e do laboratório de um alquimista
a uma sessão de tortura em praça pública.
Não é uma dessas obras que a gente elogia dizendo ser
“uma jóia de fino lavor”. É um livro enorme, desproporcional, heterogêneo,
acidentado. Parece menos com a beleza austera e simétrica da catedral que o
inspirou e mais com a Catedral de Sevilha, um conjunto de edificações incongruentes
e fascinantes, que cresceu por justaposição ao longo dos séculos.
Não deixo de ver ecos de Quasímodo-raptando-Esmeralda nas
cenas de King Kong (1933) onde o
gorila rapta Fay Wray.
(manuscrito de Victor Hugo)
No início do livro, Victor Hugo diz ter avistado uma
inscrição na parede interna de uma das torres da catedral, com a palavra grega
ANANKE, “fatalidade”, inscrição que anos depois foi raspada. Essa palavra,
gravada naquele cenário, foi, segundo ele, o impulso inicial para a concepção
da história.
Ananke, fatum, fatalidade, maktub, estava escrito. Tudo
isto faz parte da concepção de vida do melodrama e do folhetim, onde todas as
coisas parecem convergir, como num acelerador de partículas, para produzir colisões
e descargas de energia que sacodem vicariamente o leitor. O Universo e o mundo
humano vistos como um Livro escrito por alguém, onde podemos apenas cumprir as
ações, dizer as falas.
Este volume que li tem muitos erros de revisão, transposição
de linhas, etc. Em todo caso a Edigraf
lançou na época, além deste livro, uma edição em dois volumes de Os Miseráveis que também tinha lá em
casa. Havia um filme baseado neste também, com cenas impressionantes nos
subterrâneos de Paris, que lembravam o Rocambole.
Acho que é a adaptação francesa (1958), de Jean-Paul Le Chanois, cuja
publicidade pode ter ajudado a fazer publicar aqui o romance.
O Corcunda de Notre
Dame não é um romance fantástico, mas intersecciona gêneros que estão
sempre contaminados de um certo sobrenatural, como o Gótico e o Barroco. Pode-se
dizer que o filme tem um clima insólito,
porque nele não se manifesta propriamente uma força espiritual ou além-matéria,
mas porque depende de circunstâncias excepcionais de convergência, e da coincidência
de elementos improváveis.
Esse tipo de história não questiona o universo físico, e
sim o universo lógico. São coisas diferentes. A dualidade conflituosa entre
Ciência e Religião durante milênios deu origem a essa noção de que a dualidade
mais polêmica do Universo é matéria versus alma. E se fosse (como parece ser
com idêntico peso) uma luta entre Ordem e Entropia?
Com todo o seu exagero, o seu dramalhão, seu
sentimentalismo exacerbado, o livro de Victor Hugo é a transição entre duas
literaturas. Com a mão esquerda estendida ao passado ele toca Rabelais, toca os
romances góticos ingleses e franceses, toca o visionarismo alemão de Hoffmann e
de Meyrink. Com a direita, ele derrama uma versão destilada dessa literatura em
todo o romance popular que veio depois, de Rocambole a Vidocq, de Arsène Lupin
a Fantomas.
É curioso notar a pouca influência de Hugo no romance
francês do último meio século, mas isso certamente é desinformação minha. Tudo
que leio dos franceses não lembra Hugo: lembra o vivisseccionismo visual do nouveau roman. Prosa descritiva, sem
dúvida, mas prosa sem loucura, a não ser de vez em quando um certo molho
freudiano.
Talvez ainda haja algum eco de sua exuberância verbal e fabulatória
na aventura pseudo-medieval de Raymond Queneau (Les fleurs bleues, 1965).
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