domingo, 29 de abril de 2018

4342) Dez álbuns: 4 - Jackson do Pandeiro (29.4.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

O desafio inicial era falar de um álbum por vez. Como quem manda sou eu, baixo uma Medida Provisória e afirmo que estas três coletâneas de Jackson do Pandeiro formam um único disco. Se me apontarem um revólver à cabeça para eu dizer em qual dos três fica uma música qualquer, podem apertar o gatilho: não sei. Para mim, constituem uma totalidade inconsútil, um continuum.

E eles guardam a nata, o filé, a flor do coco da obra do mestre Jack, mesmo sabendo que ele tem outros álbuns sensacionais e jóias espalhadas por toda a sua discografia. Mas estes três discos não são álbuns no sentido de “obra inteira”: são coletâneas, empacotamento conjunto de sucessos que em sua época saíram de 2 em 2, na forma de discos de 78 rotações.

Se alguém me pagasse eu escreveria um livro inteiro sobre este repertório, mas como é de graça vou fazer como os vendedores de amendoim-torrado da Cinelândia: deixo uma derramadinha grátis e sigo em frente.

Ouvindo faixa por faixa, uma atrás da outra, a gente percebe a variedade de ritmos e de levadas que Jackson malabarizava em seus discos.

Veja-se por exemplo a cadência implacável das percussões conjuntas de “Casaca de Couro” (Rui de Morais e Silva), sem perder um microssegundo de compasso, ajudada pelo canto staccato do coro (tão preciso e marcante quanto o de “Na base da chinela”), justificando plenamente o grito de “ô serviço!” do cantor. Sem falar nas rasgadas lamentosas do clarinete, assinatura eterna desta faixa.

Não é só marcação pesada, é a sutileza. “Tem mulher, tô lá” é um xotezinho divertido, mas seu carimbo é a suspirada da sanfona depois do “tem mulher...”.

“Peneirou Gavião” tem esse paralelo visual (a famosa fanopéia) entre o movimento do gavião planando (peneirando) no ar e o movimento da peneira com a massa da mandioca. E tem um verso de pé-quebrado (faltando uma sílaba), “Filozinha gritou”, que o cantor encaixa magistralmente no ritmo sem deixar traço.

Acho que já se escreveu muito sobre “Cantiga do Sapo”, com seu “Tião – Ôi...”.

Quem já morou perto das lavanderias do Alto Branco já ouviu de longe esse coro dos sapos à noite, um perguntando, outro respondendo, coro que foi glosado por Manuel Bandeira ao satirizar a cena literária carioca (“Os sapos”, em Carnaval), e que Moacir Laurentino imortalizou numa sextilha:

Acho bonito o sertão
quando o chão está molhado:
um sapo faz “ôi” daqui,
outro “ôi” do outro lado,
parecem dois violeiros
cantando um mourão voltado.

E um “diálogo” também imitado no refrão entre o coro masculino e o feminino, e depois nos floreados do clarinete e da sanfona.

Acho que uma das primeiras músicas de Jackson que vieram catalogadas como “samba” foi “Falsa Patroa”, uma música de malandragem digna de Moreira da Silva:

Doutor delegado, eu não tive culpa,
foi a sua criada que me convidou,
doutor, dizendo que o apartamento era dela
me pegou pelo braço para jantar com ela...
O senhor compreende, viu doutor?
A cabrocha é boa... Eu fiquei iludido
até pensando que ela fosse a patroa.

Olha só a distância psicossocial que existe entre músicas rurais e ingênuas como “Moxotó” e uma música como esta, tipicamente de Copacabana ou Botafogo nos anos 1950, com seu exército invisível de empregadas domésticas descolando um PF para um paraíba amigo, na ausência dos donos da casa. Seu lado B deveria ser o “Xote de Copacabana”, que já cantei mil vezes em mesa de bar: “Eu vou voltar, eu não aguento, o Rio de Janeiro não me sai do pensamento”.

Sem falar que nesta faixa aparece por duas vezes uma marca registrada de Jackson: o tratamento “nego véi”, com que ele se dirigia a todo mundo.

Ainda na coletânea O Rei do Ritmo tem pelo menos três faixas com uma coisa curiosa na música nordestina de então: a canção de briga, que seria um equivalente ao funk proibidão ou gangsta rap de hoje em dia. A música que fala de sururu, briga, quebra-pau entre bêbados ou entre eles e a polícia.

“Forró em Caruaru” (Zedantas): “Matemo dois soldado, quatro cabo e um sargento; compadre Mané Bento, só faltava tu!”

“Cabo Tenório” (Rosil Cavalcanti): “Os caba de lá quiseram lhe bater, e ele gritou: Vixe! Vai ter confusão. Balançou a mão, deu murro e bofete, tomou canivete, peixeira e facão...”

“O crime não compensa” (Genival Macedo / Eleno Clemente): “Antigamente eu só andava bem armado, uma peixeira, um revólver e um punhá, tinha uma foice bem vazada dos dois lados, o maior prazer da minha vida era matar”.

Essas músicas passariam hoje nas censuras? Tanto a censura do policialmente errado quanto a censura do politicamente correto? Cartas para a redação. Sociologicamente, elas são reflexo de um tumulto social permanente entre polícia, gente pobre querendo se divertir e gente perturbada querendo perturbar. Canções são acusadas de “fazer apologia” da violência, mas eu vejo tais canções como crônica, jornalismo, documento, retrato da vida real de quem canta e de quem ouve.

E nem vamos nos espalhar no resto do repertório jacksoniano, com “Forró do Surubim”, “A Lei da Compensação”, “Forró em Limoeiro”, “Pacífico Pacato”  e tantas mais.

Essa é a única realidade do forró? De jeito nenhum. Violência tem no rock, tem no samba. Briga em salão tem nos Clubes que reúnem a fina-flor da nossa sociedade, quando um grupo de playboys resolve tomar as dores do filho de Doutor Fulano cuja noiva foi desacatada por alguém. (Eu já vi muita mesa e muito litro de uísque voando pelo ar, nas tertúlias dos nossos sodalícios.)

Saindo dos forrós urbanos e suburbanos, Jackson lembra também o baião rural, coco rural, sei lá que classificação etnomusicológica se dá a isso.

Como por exemplo a beleza que é “Coco do Norte” (Rosil Cavalcanti):

No coco do Norte tem caracachá,
zabumba, ganzá, poeira do chão,
coqueiro fazendo improvisação,
compadre e comadre seguro na mão;
batendo umbigada com palma de mão...

“Isso assim é coco, nunca foi baião”, diz o próprio estribilho da música. E outro retrato rural que vai fundo é o de “Êta baião” (Marçal Araújo):

Como é bonito ver, no alto sertão,
os violeiros rasqueando a prima com bordão...
Os cabras fazem desafio
rima sem perder o fio
e assim nasce o baião... Êta baião!

São os velhos batuques de cem anos atrás, as festas de fazenda em que se misturavam a dança ao som das percussões e os improvisos ao som da viola, antes que as duas modalidades se separassem para seguir carreiras independentes.

É o universo de Dona Guidinha do Poço de Oliveira Paiva, de Luizinha de Araripe Jr., de tantos livros de época que registraram essa origem comum de nossa criação musical e poética. O tronco de onde brotaram Pinto do Monteiro e Jackson do Pandeiro.










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