segunda-feira, 23 de abril de 2018

4339) Dez álbuns: 2 - "Samba Esquema Novo" (23.4.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Como já falei nesta coluna, o Facebook é hoje em dia nosso mais sofisticado instrumento de cadastro: de hábitos de consumo (para o Mercado) e de detalhes biográficos, políticos e psicológicos de cada usuário (para o Estado). A briga entre o Mercado e o Estado é uma briga entre Godzilla e King Kong. A briga é entre eles. Nós somos a população de Tóquio, aquele formigueirozinho atarantado por cima do qual desabam os prédios.

Portanto, se o Mercado quiser me empanturrar de ofertas de discos de Jorge Ben, e o Estado quiser me botar na cadeia por gostar deles, sintam-se à vontade, sou réu confesso.

Samba Esquema Novo é o disco de estréia de Jorge em 1963, mas eu provavelmente só vim a ouvi-lo no ano seguinte, quando ele tocava direto na rádio.

Tenho muito clara na lembrança uma noite de meio de semana em 1964, quando fui ao Estádio Presidente Vargas ver um jogo do Treze com o Estivadores, de Alagoas. Nessa noite, sentado na chamada “arquibancada principal” por trás do gol (e não nas cadeiras cativas, onde ia com meu pai) passei o jogo todo com o radinho ao ouvido escutando música, porque o jogo (que acabou 1x1) estava ruim demais. E deve ter tocado “Mas Que Nada” uma dez vezes durante aquela hora e meia.

Um problema auditivo que eu tenho até hoje é a dificuldade em distinguir sons específicos no meio de uma massa sonora. “Olha o que o trumpete está fazendo!”  “Trumpete?! Tem trumpete aí?!”  É como se eu ouvisse tudo fora de foco. Como se visse ao longe a massa de uma floresta, as cores, o formato geral, mas não percebesse que aquilo é formado por árvores individuais.

Daí que ouvindo música erudita, por exemplo, sempre gostei de obras para piano ou cravo, ou, no máximo, de quartetos. Obra orquestral eu também gosto, gosto do resultado geral, mas não percebo – como meus amigos músicos percebem – o que cada instrumento está fazendo ali.

A vantagem que eu via nos discos da Bossa Nova era que o cara era capaz de escutar o violão de João Gilberto sem o diabo duma orquestra atrapalhando. E Samba Esquema Novo, por algum mistério insondável de arranjo & estúdio, permitia ouvir ao mesmo tempo a voz cantando a música, o piano salpicando comentários melódicos, os metais crescendo e reduzindo interferências harmônicas em paralelo, a bateria percutindo seca e precisa ao fundo, e o violão-locomotiva arrastando o resto.

Até aquele momento, meu samba se resumia a Elza Soares, Miltinho, Roberto Silva, Demônios da Garoa. O samba de Jorge Ben coincidiu com o momento em que comecei a aprender violão, porque minha irmã Clotilde já tocava o dela, ao seu estilo Nara Leão; e eu começava a arranhar meus dós maiores, guiado pelo Método Prático de Violão, de Paraguassu, que sigo até hoje (risos).

Jorge Ben era diferente de tudo. Tinha os falsetes ousados; num tempo machista como aquele, provocaram alguns comentários desdenhosos que se evaporaram depressa. Tinha o jeito de dizer “voxê” (todo mundo que escrevia sobre o disco tinha a obrigação de se referir a isso, e lá vou eu entrando na roda de novo).

E tinha algo que sempre me seduziu na música popular, a espontaneidade de criar onomatopéias próprias, sílabas soltas de validade exclusivamente melódica, um canto de garganta-e-língua que não precisava de dicionário. Saiubá, saiubá... Sacundim, sacundém, imboró congá... Uala, ualalá... Tin-don-don... Como se a voz fosse um instrumento intraduzível, que nenhum outro fosse capaz de emular.

O violão de Jorge tinha aspectos que eu, leigo-zero-quilômetro naquele tempo, só vim perceber depois. E me socorro das notas de Armando Pittigliani na contracapa do disco, textos de um tempo mais alfabetizado do que o nosso, em que os discos traziam comentários de si próprios. (É até bom que isso não exista hoje. Dou por visto o nível das sandices que seriam ditas.)

Dizia Pittigliani:

O violão – que Jorge aprendeu sem professor, apenas com um “método” desses que por aí existem e muita força de vontade – é uma das chaves do seu êxito. Seu inato talento musical proporcionou-lhe descobrir uma nova “puxada” para o nosso samba – fazendo do violão um instrumento, sobretudo, de ritmo. Na sua “batida” tanto se destaca o “baixo” como o desenho rítmico da sua pontuação na maneira toda sua de tocar. Um exemplo disso é o fato de várias faixas deste disco não contarem com o contra-baixo na orquestração. Somente o violão de Jorge já dá a necessária marcação, dispensando portanto aquele instrumento de ritmo. O “balanço” do acompanhamento repousa quase sempre no seu violão.

Muitos anos depois, num dos retornos triunfais de Jorge às paradas de sucesso, na época de “W-Brasil”, vi uma entrevista em que perguntaram o segredo de sua “levada” com a banda de Zé Pretinho, e ele disse: “Todo mundo usa só um baixo na banda, eu uso dois.” Parece uma contradição com o que vem transcrito acima, mas não é. A música de Jorge se baseia num ritmo tão fortemente marcado que é capaz de acolher tanto os improvisos dadaístas daquela canção quanto as letras longas, serpenteantes, quase em canto-falado, de “Fio Maravilha” ou “Taj Mahal”.

E aquele romantismo sensual nas letras: “olha, lá vem ela... estou de olho nela...”, “você passa e não me olha, mas eu olho pra você...”, acomodando o fervilhar dos hormônios adolescentes, seduzidos pelo olhar provocante da garota, um jeitinho de ombro, uma leveza no passo, tudo transformando o poeta num predador benigno cheio de amor pra dar. Em “Balança Pema”, o fetichismo inocente da imaginar o pezinho moreno numa sandália prateada.  A presença da chuva (“Chove, Chuva”) molhando o corpo vestido da mulher desejada, imagem que ele retomaria depois em outras músicas, principalmente na irretocável “Que Maravilha” (com Toquinho).

Eu sempre julguei um compositor, em primeiro lugar, por suas letras; mas em alguns casos, como o de Jorge, sempre dei de ombros para versos como “é puro e belo e inocente como a flor”. Não são frases poéticas: são as açafatas da Princesa Melodia, servindo-a, ajudando-a a surgir e a brilhar. Nem tudo que faz parte de uma canção precisa estar o tempo todo à frente do resto. Palco não tem só proscênio.

Quase meio século depois daquela noite do jogo do Treze, eu estava na praia de Tambaú, em João Pessoa, numa noite de céu carregado, no meio de uma turma de amigos que se deslocou para ver Jorge Ben e sua enorme banda. E no auge do show, quando o toró ameaçado finalmente desabou “di cum força”, Jorge atacou o “Chove Chuva”, que todo mundo entoou junto, com o pulmão inteiro.

Pois é... tantas vezes vai o cântaro à fonte que um dia volta cantando. Salve Jorge!













2 comentários:

Mala de Romances disse...

Bráulio, meu amigo, estou acompanhando essa série dos DEZ com o maior interesse. Como sou um pouco mais jovem que você e só vi uma vitrola aí pelos idos de 1972, minha referência inicial é o rádio. E, dizia minha avó, que eu gostava do xote OVO DE CODORNA, do véi Gonzaga e SAI DO SERENO, de Abdias e João Silva. São as referências mais antigas que eu tenho em matéria de música. MOREIRA DA SILVA e JORGE BEN eu só comecei a perceber um pouco mais tarde. Nessa fase inicial estava muito ligado na música nordestina, de Gonzaga, Abdias, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino e Marinês. Messias Holanda vem um pouco depois. Um dia ouvi Raimundo Fagner num programa chamado PROJETO MINERVA, cantando O ÚLTIMO PAU DE ARARA e NASCI PARA CHORAR. Gostei demais. Em seguida vieram Ednardo, Secos e Molhados, Tim Maia, Alceu, Belchior... Espero ansioso a sua fase ANOS 70.

Arievaldo Vianna

Mala de Romances disse...

Aí me bate na cachola aquele verso controverso de Belchior, na canção EM RESPOSTA À CARTA DE FÃ: "Mas quem sou eu, mentalidade mediana, para imitar Jorje Ben..."