sábado, 13 de agosto de 2016

4146) O tradutor e o autor (13.8.2016)



Ao se traduzir autores considerados clássicos, respeitados, conhecidos, há uma mistura interessante entre coerção e liberdade.

Um autor clássico, famoso, best-seller é em geral um autor que se pode consultar em várias traduções. Um crítico, um professor, um colega, têm outros exemplos para comparar com a tradução que estão examinando. Por clássico entendo tanto Shakespeare quanto Agatha Christie: autores para os quais não faltam versões no mercado.

Isso é uma coerção porque o novo tradutor sabe que seu trabalho provavelmente vai ser comparado com o trabalho dos que o antecederam. O que era para ser um labor-de-afeto feito no silêncio e na solitude acaba se transformando numa competição pública.

Por outro lado, pode ser uma liberdade, porque o novo tradutor dispõe de precedentes, de traduções anteriores que ele pode consultar. Uma vez um amigo se horrorizou ao me ver traduzindo e tendo ao lado uma pilha de traduções antigas do mesmo livro. “Você está colando?!”, perguntou ele, horrorizado diante daquela contravenção escolar.

Há várias maneiras de responder a isto. Uma é dizer que você não está preguiçosamente copiando a solução que um colega adotou vinte anos atrás: está justamente se comprometendo consigo mesmo a encontrar uma solução tão boa quanto a dele.

Outra é pensar que todos os tradutores estão produzindo um gigantesco corpo de notas de pé de página ao texto original. Consultar o que os outros já disseram nos desobriga de repeti-los. E nos libera para a repetição, quando consideramos que estamos apenas repetindo o óbvio, naqueles casos inevitáveis em que the book is on the table.

E nem mesmo essa proliferação de precedentes quebra todos os nossos galhos. Já me vi diante de uma palavra ou expressão inacessível a tudo: dicionários, Google, forums de tradutores. Consultei então duas traduções brasileiras do mesmo livro, uma portuguesa, uma espanhola e uma francesa: cada uma delas cortava o nó górdio de uma maneira totalmente diferente. O que fiz? Inventei também.

Trabalhamos com um olho no público que vai ler o livro (e que precisa ter nas mãos um livro legível) e com um olho no autor (que precisa ser respeitado; é ele, em última análise, o patrão a que devemos obediência).

Muitas vezes é útil saber, da própria boca ou pena desses autores, o que eles mesmos consideravam menos relevante na própria obra.

Garcia Márquez pode se dar o luxo de afirmar que não sabe manejar bem o diálogo, por isso sua narrativa é geralmente uma narrativa distanciada, sem o ping-pong verbal de muitos autores.

Raymond Chandler podia dar de ombros, com azedume, e dizer, o enredo, dane-se o enredo, o que eu procuro é outra coisa.

Borges podia pedir desculpas a gerações sucessivas de leitores pela reiteração dos próprios clichês: espelhos, espadas, tigres, labirintos...

Aceitar os limites ou os cacoetes do autor significa acompanhar seu modo de expor, sua notação, sua mecânica pessoal de narrativa. Nesse caso, o tradutor precisa seguir a voz do texto original. É como se fossem dois tapetes mágicos voando juntos, num voo quase sincronizado, o autor dando guinadas imprevistas e o tradutor tentando acompanhá-lo sem perder o ritmo.

O tradutor tem que acelerar quando o original acelera, retardar quando retarda, ser nítido ou meio incoerente sempre que o original for assim.

Uma questão interessante que se coloca é quando o tradutor acha que o autor foi kitsch (brega, naïf, etc), algo que em tese deveria ser evitado. Que tipo de comentário a tradução pode fazer? Ressaltar que o autor teve ingenuidade e mau gosto? Procurar pensar como ele, e produzir em português uma imagem que dê essa mesma impressão, e mais a de sinceridade, de quem estava dizendo aquilo e achando que estava arrasando?

E quando o autor erra, o tradutor tem o direito de corrigir? Ou pelo menos sugerir uma nota explicativa? Já localizei erros bobos em edições recentes de livros que vêm sendo publicados há meio século. Troca de um nome por outro, erro autoral que poderia ser corrigido editorialmente, na revisão.

Mas, e quando o autor fala bobagem? Se o autor Fulano, referindo-se a outro, afirma que ele era irlandês, quando na verdade era nativo da Escócia, a gente corrige e fica na moita? Deixa o autor famoso em erro? Escreve para a editora original? Bota asterisco e nota? Faz de conta que não sabia?

Em geral quem decide isso é mesmo o editor, que é aonde vão todas as fichas que não caíram. O tradutor dá seus palpites, mas a decisão é mais acima, porque há um problema com o original, não com a tradução.

Deve sair em breve minha tradução de A Irmãzinha de Raymond Chandler, o quarto volume na série da Alfaguara/Objetiva.

Nesse volume incluí uma carta de Chandler para a agente literária Bernice Baumgarten, queixando-se dos numerosos erros que ele encontrou em poucos minutos nas páginas iniciais de uma edição italiana de um livro seu. Ele explica todas as coisas erradas que, mesmo falando pouco italiano, ele consegue perceber. Vê-se claramente que era uma edição mais que descuidada e uma tradução cheia de pequenos equívocos.









2 comentários:

Renata Lins disse...

minha escolha: deixar (o erro) e mandar coment para a editora.
eles que se virem.
já vi isso em nota de rodapé (N. do T.), mas acho que não fica bom. Nota de tradutor é pra esclarecer, não pra corrigir.

Unknown disse...

Como me envolvo nessa questão!
Quando lendo tradutores de Nietzsche,me encantei com os vários sentidos para "trieb"

Saudações!