sábado, 5 de março de 2016

4068) Os cantos coletivos (6.3.2016)



Uma vez um jornalista meio esperto questionou um músico da banda Sepultura, perguntando: “Você acha que as platéias conseguem entender as letras das canções que vocês estão urrando?”  E ele disse: “Rapaz, quem vai num show da gente já sabe aquilo tudo de cor”. Disse bem, porque quando estou vendo um show realmente grande, com som de estrondar, uma das coisas que mais gosto é de cantar a plenos pulmões. Não para ser ouvido. Canto pelo prazer de cantar, que faz tanto bem ao corpo e à mente quanto dançar. Nem toda música é para berrar junto, claro. Mas a música-de-berrar-junto tem propriedades terapêuticas que são só suas.

E mais uma coisa. Eu diria que 90% das pessoas no mundo são bastante desafinadas. Não, digamos: dois terços. Não, digamos: mais da metade.  Enfim, os desafinados devem ser maioria, e quando largados ao seu próprio entusiasmo para puxar um parabéns-pra-você acabam, como disse Torquato Neto, desafinando o coro dos contentes. Mas essas pessoas num show de rock podem se esgoelar em “Jumpin’ Jack Flash” ou num show de samba com “Foi um Rio que Passou na Minha Vida” sem pagar mico algum, porque o som é ensurdecedor e o cara pode até dar uma viajada, e achar que aquilo que está saindo das caixas de som é ele que está emitindo.

Experiências de campo, conduzidas em condições de rígido controle, me provaram que em mesa de bar, bloco de carnaval e torcida de futebol para cada 100 pessoas cantando basta haver umas 20 ou 30 de gogó possante e afinação segura. Essas pessoas puxam o canto sustentando um padrão tonal contínuo, e as vozes mais semitonantes acabam meio que se aglomerando à sua volta. Se esses 20 ou 30 pararem juntos, desanda tudo. Fiz a experiência.

Os desafinados também têm um coração, e fazem no canto coletivo a sua terapia. Os sem ritmo também. Não havendo percussão de instrumentos, são as vozes que ditam sozinhas o tempo e o andamento, indo ao fluxo natural das frases cantadas, sem uma marcação fixa. Wagner Tiso declarou certa vez que tinha dificuldade em estabelecer uma marcação rítmica constante nas canções de Milton Nascimento, porque a voz, a melodia e as frases seguiam apenas seu próprio formato, sem parecer se encaixar num “metrônomo” externo a elas. Isso é coisa do canto religioso, que muitas vezes amolda sua cadência às longas caminhadas dos romeiros, ou dos cantos de trabalho, que se amoldam aos movimentos repetidos do corpo.  Já emissões vocais como a do aboio prescindem de ritmo, sua vocação é alongar-se, prolongar-se em notas longas entre as quais se intercalam sílabas de canto, escandidas com muita intensidade e pouca pressa.




Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Muito legal. Sou desafinado.