sábado, 5 de outubro de 2013

3306) Unanimidade burra (2.10.2013)





Nelson Rodrigues é autor de frases brilhantes. Um dos maiores fazedores de frases da nossa língua, juntamente com Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Guimarães Rosa, Glauco Mattoso, Otto Lara Resende... 

Não apenas a frase sentenciosa, que exprime um conceito redondo, impactante: “Nem toda mulher gosta de apanhar, somente as normais”. Mas a frase-incompleta, que precisa vir apensa a um texto maior, mas dá-lhe um colorido e significado inconfundíveis: “o olho rútilo e o lábio trêmulo” é uma imagem rodriguiana que serve para descrever o personagem tomado por uma emoção incontrolável, seja a luxúria, a raiva, a cobiça.

Uma das frases mais desperdiçadas pelos que o citam, no entanto é o famoso “toda unanimidade é burra”. 

Eu diria que toda frase que tem o formato “todo x é y” é burra, mas esse tiro-no-pé tautológico me força a equacionar a coisa de outra forma. 

Frases com o formato “todo x é y” não exprimem uma verdade científica (uma verdade exterior à mente que a enuncia, uma verdade verificável por terceiros), nem mesmo uma opinião definitiva do autor. 

Frases assim são explosões, desabafos, e não é por lhes faltar um ponto de exclamação que são menos exclamativas. Podem até não ser verdade, mas são algo que o autor pensou por impaciência num certo instante e resolveu explodir.

O problema com esse formato de frase é que esse é o modelo preferido de enunciado para a afirmação de preconceitos: todo baiano é preguiçoso, todo árabe é terrorista, todo russo joga bem xadrez... 

Nelson disse sua frase (quanto quer de aposta?) porque era um insatisfeito em seu estado normal e um revoltado em momentos mais intensos. Gostava de ser do contra, de desafinar o coro dos contentes. Se dez pessoas juntas tivessem a mesma opinião ele via nisso um sinal de preguiça mental, de passividade, de obediência cega, de mentalidade admirável-gado-novo.

O problema, hoje, é que quando um livro faz sucesso e começa a ser elogiado logo aparece alguém proclamando: “Esse filme não pode prestar, porque toda unanimidade é burra”. Se todo mundo em volta concorda quanto a um fato recente no País, surge alguém para dizer que essa interpretação é burra, valendo-se de Nelson. 

Nelson era um ressentido cósmico, um existencialmente inadaptado, um Seu Lunga sem paciência para com a estupidez e a mesquinharia humanas. Na ditadura, ele, um conservador, via-se ilhado em redações aguerridamente esquerdistas e oposicionistas. Individualista até o tutano, não queria nenhum grupinho dizendo-lhe o que pensar. 

Discordo muitas vezes de suas idéias, mas hoje, quando ele começa a virar unanimidade nacional, é preciso a todo custo defendê-lo da burrice alheia.


3 comentários:

Fábio disse...

Principalmente em literatura, onde as vendas para uma maioria são bem poucas, o ato de julgar que é ruim o livro, só por causa que vende muito, pelo que me parece tem mais haver com inveja do que sinceridade.

Renata Lins disse...

que post ótimo.
(9 anos depois).

Anônimo disse...

Eu acompanhei os citados nos seus inicios e durante algum tempo. Lembro-me bem o que proocavam no povo brasileiro de várias épocas estes conhecidos autores..Achei muito engraçado este artigo! Ri mesmo lembrando aquela época da minha juventude em Campina. A rádio, a Universidade e os amigos. Que ingênuos, influenciáveis e bestinhas éramos...kkkkkkkkkkkkkk