segunda-feira, 17 de maio de 2010

2055) O julgamento tendencioso (9.10.2009)



Uma das coisas mais absurdas da Santa Inquisição não era a prática da tortura, que ao fim e ao cabo faz parte da nossa atividade policialesca desde que o mundo é mundo. Era a prática do Nonsense. Havia um teste, ao qual eram submetidos os suspeitos de heresia, que prima pelo absurdo. Mandavam-no caminhar sobre brasas, de pés nus, por uma certa extensão; ou andar dez metros segurando uma barra de ferro em brasa. Se se queimasse é porque era culpado. Foi provavelmente satirizando esses processos que Mark Twain inventou (“O Romance de Virgem Esquimó”) o julgamento esquimó em que o réu era jogado às águas: se fosse inocente morria afogado, se fosse culpado conseguia salvar-se.

Faz parte da mentalidade religiosa esse flerte com o improvável, porque para quem acredita em Deus – ou pelo menos num Deus que se dá o trabalho de interferir pessoalmente em cada pequena disputa humana, contenda de vizinhos, batida no trânsito, briga de bar – não existe Acaso. Tudo é a expressão da vontade de Deus, que prefere se comunicar de forma críptica e indecifrável. Daí que tantas escolas místico-filosóficas utilizem seus lances-de-dados para ganhar um vislumbre desses processos: búzios, I-Ching. Tarô.

Profetizo que um dia a nossa assim-chamada civilização irá recorrer a processos parecidos para determinar a culpa ou inocência dos acusados de um crime qualquer. Afinal, nosso aparato tribunalício de hoje não passa de um teatro, onde, como se diz por aí, um júri de 12 pessoas se senta para decidir quem fala melhor, se o promotor ou o advogado de defesa.

Estamos deixando de ser uma civilização beletrista, oratória, e indo na direção de uma civilização baseada em escolhas randômicas, permeadas com opções místicas. Por volta de 2050, quando um cara for acusado de um crime ele será submetido ao veredito de diversas tendências do pensamento então contemporâneo. Primeiro, ele participará de uma leitura do Tarô por um tarólogo juramentado do Sistema Penal. O tarólogo “botará as cartas” e no final emitirá o seu parecer técnico sobre a culpa do acusado. Em seguida, ele prestará o teste grafológico. Terá a missão de escrever sua versão dos acontecimentos de que é a acusado, à mão, num máximo de duas laudas, que serão enviada ao Instituto Grafológico Judiciário, onde técnicos darão seu veredito sobre a confiabilidade do que o acusado afirma por escrito.

Claro que nenhuma dessas instâncias será definitiva. A mentalidade da época será cumulativa, holística, multidisciplinar. Alguns países instituirão o lançamento de búzios; outros, a Tábua Ouija que colherá o depoimento póstumo da vítima. Suponho que haverá recursos ainda mais sofisticados: um gerador aleatório de dígitos (como os que criam os localizadores dos voos para as companhias aéreas), que em seguida serão submetidos ao crivo da Numerologia. A sentença será baseada no somatório destes julgamentos, e as possibilidades, como sempre, são infinitas.

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