terça-feira, 2 de março de 2010

1733) Machado: “Sales” (1.10.2008)



(Machado, por Borges)
 

Já falei aqui sobre os Sonhadores Pródigos na obra de Machado, personagens recorrentes que têm algo de gênio criativo e de maluco desorientado. Seus protótipos mais visíveis são o Quincas Borba (de Brás Cubas e do livro a que dá nome), e o Dr. Simão Bacamarte, de O Alienista

Mentes inquisitivas, afeitas ao bordado mental de teorias abstrusas, que parecem menos abstrusas quando é o próprio autor quem as expõe, com gestos, eloqüência, verve, e a convicção íntima que anima os gênios e os doidos. 

Outro desse grupo é o protagonista de “Sales”, conto pouco conhecido, publicado na Gazeta de Notícias em 1887. Sales não é propriamente um farol da ciência ou da filosofia, mas é também um sonhador, um compulsivo. Como diz Machado: “Cortava largo, sem poupar pano ou tesoura”. Animado por uma inesgotável energia interna, ele impressiona quem lhe está à volta. 

É o caso de Melchior, senhor de engenho em Pernambuco, que se deixa arrebatar por uma idéia de Sales para a produção de açúcar e lhe cede em casamento a filha Olegária, ou “Legazinha”. Sales mergulha nos papéis, nos cálculos, mas o casamento o distrai, principalmente depois que traz a mulher para morar no Rio. Legazinha se preocupa ao ver que o marido deixa logo para trás a idéia do açúcar e já vem com outra, uma taxação fixa a cada habitante da capital para provê-lo de pescado durante a Semana Santa: “O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das ações, entradas, dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado, somado”. 

Vê-se aqui que o talento de Sales difere dos demais em que se foca na administração e nas finanças, em vez de nas letras e artes. Sales é um empreendedor; um Lesseps ou Mauá em botão. O que lhe falta? Dinheiro não é, porque o dote de Legazinha o abastece com fartura. 

Falta-lhe talvez sorte, ou fazer-se entender por uma humanidade bronca e vagarosa. A companhia de pescado não dá certo, e Sales anuncia uma ida à Europa, para pesquisar a implantação de uma fábrica de rendas: “o Brasil dando malinas e bruxelas”. 

Antes mesmo de embarcar, Sales já visita um Ministro do Império para mostrar-lhe outra idéia que acabara de ter: arrasar os prédios públicos do Campo da Aclamação e substituí-los por edifícios de mármore. O Ministro vacila ante o faraônico da proposta, balbucia que o governo não tem recursos... 

Nada desanima Sales. É um plano atrás do outro, uma idéia gigantesca sendo eclipsada por outra ainda maior. O Brasil é pequeno para seu delírio criativo, e se o Brasil o é, o que dizer do dote de Legazinha? Em seis anos se evapora, e a apaixonada esposa, chorando às escondidas, vê-se preparando balas e compotas para vender e sustentar a casa. 

Sales cai doente; em seu derradeiro delírio antes de expirar, tem uma visão de “milhares de criaturas humanas, com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia... distribuir...”





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