domingo, 28 de fevereiro de 2010

1724) O terror e o susto (20.9.2008)







Quando eu era garoto, havia uma história de terror que requeria um certo ritual para ser contada. A pessoa pedia que fossem reduzidas as luzes do quarto ou da sala onde a gente estivesse. Começava a contar a história, com rosto muito sério, voz pausada, num tom baixo, quase como uma confidência que não podia ser ouvida na sala vizinha. Era a história de um caminhoneiro que vinha viajando à noite. Ele estava ansioso, cansado, dirigindo há quase 24 horas sem parar. Passava diante de um muro branco e via que era o cemitério do vilarejo próximo. Mais adiante, um vulto acenava pedindo carona. Ele parava, pensando que conversar com alguém o ajudaria a manter-se acordado.

Abria a porta da boléia e subia uma mulher vestida de preto, com um véu escuro sobre o rosto. Ela agradecia, e o caminhão partia de novo. O motorista ficava curioso em saber o que a mulher fazia ali àquela hora, mas como ela ficava em silêncio ele não conseguia encaixar uma pergunta. A mulher pousava as mãos sobre a saia, e, olhando com um rabo de olho, ele via, horrorizado, que as mãos dela estavam cheias de cortes profundos, feitos com faca, cheios de sangue coagulado. Ele se assustava e dizia: “Meu Deus! Dona, quem foi que fez isso com as suas mãos?!” E a mulher se virava para ele, afastava o véu e dizia: “Foi você!!!”

O detalhe é que nesse ponto a pessoa que narrava a história gritava a plenos pulmões. Rapaz, era um susto que eu vou te contar. Depois de criar o clima com meia-luz e voz baixa, esse grito, vindo de repente, era um teste cardíaco pra qualquer um. Vi variantes dessa história, e a que contei é a primeira de todas, que ouvi quando tinha uns dez anos.

Muito bem. Folheando aqui o meu Oxford Companion to Children’s Literature (editado por Humphrey Carpenter & Mari Prichard, 1984) achei uma observação interessante no verbete “Little Red Riding-Hood”, que outra não é senão nossa conhecida Chapeuzinho Vermelho. A versão mais antiga dessa história foi recolhida por Charles Perrault em seus Contes de ma mère l’Oye, de 1697. No manuscrito de Perrault para essa coletânea (escrito em 1695), junto à história de Chapeuzinho há uma nota à margem do trecho em que a menina pergunta ao Lobo para que servem aqueles olhos, orelhas, etc., até a boca, que ele responde: “Pra te comer!”.

Dizem os autores: “Na margem do manuscrito há uma anotação para o contador da história, instruindo-o a dizer essa palavras (do Lobo) numa voz muito alta, para amedrontar a criança, como se o Lobo fosse devorá-la. A história, em outras palavras, é um jogo, que termina com o contador fingindo avançar sobre o ouvinte.” O mais interessante é que a história e o jogo (ou o susto) acabaram se despregando um do outro, porque ao que eu saiba ninguém conta a história de Chapeuzinho com essa finalidade, nem a história termina mais aí. Mas o recurso do susto deve estar presente em muitas outras tradições da narrativa oral.









7 comentários:

Luiz Felipe Vasques disse...

É verdade. Minha avó, que não assustava nem gato, fazia uma voz estranha, mais grave, para a revelação da avó > lobo. Fazia parte da narrativa, nós adorávamos de qquer jeito.

Braulio Tavares disse...

Pois é, quando a palavra escrita substituiu a palavra falada, esses efeitos especiais se perderam. A palavra escrita tem seus limites. Agora, os games e (no caso) as HQs na Web com Gifs animados podem reconstituir essa experiência anterior. (Não que uma seja necessariamente superior à outra, é claro)

Luiz Felipe Vasques disse...

Não é uma questão de ser superior, mas de saber aproveitar a mídia. Pessoalmente, eu tenho que estar no auge da preguiça para, ao blogar um texto, não por links qdo é o caso.

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

Nunca consegui esse efeito de susto junto aos meus leitores e ouvintes. Trata-se uma arte maravilhosa que, para mim, se aproxima do truque do ilusionista.

Caó disse...

Uma das variantes dessa história, ouvia de uma vizinha velhinha nos meus 8 a 10 anos: um homem encontra um corpo de uma mulher muito bonita jogado no mato. Em um dedo tem um anel de brilhante. Tenta arranaca-lo mas não consegue devido ao inchaço. A solução foi corta-lo com uma faca. Tira o anel e vende. Com o dinheiro da venda compra um caminhão e começa a fazer carreto. Tempos depois numa madrugada de trabalho uma mulher na estrada pede carona...durante a viagem, procurando conversa, ele observa que lhe falta um dedo e pergunta o que aconteceu...

Raimunda disse...

A variante que conheço tem a seguinte conclusão: a mulher misteriosa pede pra descer e quando ela desce o motorista vê que está diante de um cemitério.

Raimunda disse...

A variante que conheço tem a seguinte conclusão: a mulher misteriosa pede pra descer e quando ela desce o motorista vê que está diante de um cemitério.