quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

1668) Cordel e arranha-céu (17.7.2008)



Há cerca de 30 anos fiz parte da comissão de seleção de temas do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina Grande. Criávamos os motes a serem glosados de improviso pelos poetas. Para se ter certeza de que os cantadores não estavam cantando versos decorados, todos os assuntos e motes eram criados pela comissão e mantidos sob segredo até o momento do sorteio, com a dupla já no palco. Tenho a tentação de dizer que esses motes eram guardados a sete chaves, mas seria faltar com a verdade. Depois de criados, datilografados e fechados, de um em um, em pequenos envelopes brancos, opacos, eles iam todos para um envelope de papel pardo que ficava embaixo do meu braço durante os três dias que durava o Congresso. Da minha mão só saía para a mão de Gilson Souto Maior, apresentador oficial do evento naquela época. Feito o sorteio, o envelope maior voltava às minhas mãos. Quando eu dormia, ele ficava embaixo do meu travesseiro.

Um mote que causou uma certa polêmica foi: “Se não fosse o valor do nordestino / em São Paulo não tinha arranha-céu”. Não pelo conteúdo, mas porque os violeiros criticaram a dificuldade da rima. Diziam: “Tem poucas rimas: chapéu, tabaréu, escarcéu...” Eu replicava: “Que nada! Veja só: cordel, papel, coronel, Babel...” E eles diziam: “Mas isso não rima com céu. Porque um se escreve com U, e o outro com L. Não rima”.

Para mim este é um exemplo típico do rigor da poética dos cantadores, algo que as pessoas de fora não entendem muito bem. Na poesia de livro, na poesia moderna, as noções de rima são muito mais flexíveis, mais liberais. Aceita-se com naturalidade a rima toante, aquela em que os sons são apenas vagamente parecidos. Já a poética dos cantadores exige uma correspondência total de sons – a tal ponto que não aceita rimar “céu” com “cordel”, simplesmente porque os dois se escrevem de maneira diferente.

Neste ponto eu discordo dos cantadores (inclusive escrevi, e canto há anos, várias glosas ao mote em questão). Na minha regra, a rima se dirige ao ouvido. Se os sons são iguais, pouco importa como as palavras são escritas, se com U ou com L. Os próprios violeiros aceitam que a palavra “passo” rima com a palavra “espaço”, mesmo que as duas sejam escritas de forma diferente.

Para mim, esse preciosismo no impasse entre “arranha-céu” e “cordel” decorre de um momento histórico em que começou a predominar, no universo da Cantoria de Viola, uma geração de cantadores alfabetizados, instruídos, diferenciados dos cantadores do século 19, em que a maioria dos praticantes da Grande Arte tinha escolaridade precária (embora também houvesse, é claro, um núcleo de violeiros letrados e cultos). A distinção entre “ÉU” e “EL” é sintoma da vitória do Escrito sobre o Oral, típica dos seguidores de Romano do Teixeira, dos cantadores letrados que querem se afastar do universo de Inácio da Catingueira, o ex-escravo que era só talento e pouca instrução.

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