O poeta John Hall Wheelock conta que quando estava na universidade foi assistir uma montagem do Ricardo III de Shakespeare. A certa altura, ele ouviu um dos atores dizer um verso que o encantou: “Vai, dorme... Eu te contemplo dos balcões do céu”.
Wheelock pensou: “Que belo verso! Gostaria de tê-lo escrito”. Escreveu então um poema intitulado “De Coelo – Canção baseada num verso de Shakespeare”. E começou a receber cartas de leitores (inclusive especialistas em Shakespeare) perguntando onde se encontrava o tal verso. Ele o procurou em todas as cópias do texto da peça, e o verso não aparecia em nenhuma.
Wheelock tinha certeza, por outro lado, de não ter inventado o verso por conta própria, porque teve inclusive de procurar no dicionário o significado da palavra “oriel” (“balcão”), que ele desconhecia.
E agora? De onde veio o verso? Ninguém sabe. Wheelock, nas edições subseqüentes do poema, assumiu a autoria, depois de perceber que não era mesmo de Shakespeare. Poderia talvez ter sido um “caco”, um improviso do ator, mas eu duvido.
Uma interpretação imaginosa seria a de que no momento em que desejou ter escrito aquele verso o poeta o fez com tal intensidade que foi magicamente transportado para um universo paralelo em que esta linha estava ausente da peça de Shakespeare, dando-lhe assim a oportunidade de assumir sua autoria.
Mais realista é supor que, na acústica variável de um teatro, Wheelock ouviu palavras parecidas e as traduziu por outras. Acontece muito, e às vezes esses erros nos dão de graça algumas boas idéias. Já referi nesta coluna que o título O Evangelho Segundo Jesus Cristo ocorreu a José Saramago quando ele, passando por uma banca de revistas, viu de relance palavras soltas e montou esse título, achando que o tinha visto em algum jornal. Voltando atrás, percebeu o engano, mas achou que o título seria um bom ponto de partida para um livro.
Coisas assim nos acontecem o tempo todo. Algum tempo atrás passei por uma rua onde havia um cartaz lambe-lambe na parede anunciando o show de um grupo chamado “Sobrado Mardito”. Voltando atrás, percebi que na verdade era “Sorriso Maroto” – mas o falso título daria um belo filme de terror com trilha sonora de Adoniran Barbosa.
O músico Brian Eno criou um baralho chamado “Estratégias Oblíquas” com frases para estimular a criatividade. Numa das cartas ele diz: “Honre o seu erro como uma intenção oculta”. E explica:
“Você pode dar-se o trabalho de elaborar uma série de condições, na esperança de que a certa altura haverá um estalo e as coisas irão todas na direção certa. Mas muitas vezes não é isto que acontece. Então, o melhor é organizar deliberadamente as coisas de modo a que ocorra entre esses elementos uma sinergia que você mesmo não compreende. Na verdade, o que ocorre não é que você tem controle total sobre o processo, mas que você está criando uma situação que expande a sua noção de controle”.
Um comentário:
Braulio Tavares, curti muito seu artigo principalmente porque ontem fui a um curso sobre historia da literatura e um dos assuntos era Ricardo III de Shakespeare.
Me identifiquei bastante com seu texto. Obrigada Sandra Schamas
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