As seqüências iniciais deste filme de Wong Kar Wai, com imagens deslumbrantes de uma megalópole futurista, nos arremessam de imediato no Futuro, “o lugar para onde todo mundo vai, mas de onde ninguém jamais voltou”. Logo logo, no entanto, o véu se rasga e estamos em Hong Kong nos anos 1960, onde vive um escritor de pulp fiction metido a charmoso, que costuma transportar para suas histórias as mulheres com quem se relaciona. Ficção científica é apenas um pretexto para falar de sutilezas existenciais, e nisto Wong Kar Wai está em boa companhia: Cronenberg, Godard, Tarkovsky, Resnais...
O filme é rico em close-ups dos ótimos atores, e em planos-de-detalhe de objetos e texturas. A narrativa é fragmentada, apesar de uma narração em “off” que nos guia, como se estivéssemos de olhos vendados. Existe uma verossimilhança palpável tanto dos ambientes físicos quanto da verdade humana por trás daquela sucessão de pequenos episódios descontínuos. O ponto frouxo do filme é o roteiro, que parece querer ficar sempre no mesmo lugar (certamente porque está gostando). É um desses filmes onde a cada vez que a tela se escurece ficamos esperando o “THE END”, só para ver que tudo continua, surgem novos desdobramentos, novas situações, novos rebates-falsos de Fim.
Um filme apenas reflete o modo de pensar do seu autor, e não precisa necessariamente do famoso “arco narrativo”, não tem que ter desfechos bombásticos e conclusivos. Ao que parece, Wong Kar Wai (não vi seus filmes anteriores) é um cineasta apaixonado por rostos, olhares, pela intensidade psicológica do entrechoque dos atores, sutilmente captada pela câmara e valorizada pelos cortes bruscos que encerram uma cena sem se estender em explicações. Falta-lhe (do ponto de vista dramatúrgico) aquela visão estrutural, em plano-geral, com que alguns diretores percebem a melhor maneira de valorizar um episódio pela geração-e-satisfação de expectativas. A essência da arte da Narrativa é o conceito de “um momento em movimento”, algo que existe com intensidade diante de nós mas que está sendo arrastado na direção de alguma outra coisa, e nos arrasta consigo.
Paradoxalmente, o que falta a 2046 é o empuxo gravitacional desse futuro dramatúrgico (e não me refiro ao futuro FC) “sugando” para si o momento que câmara e atores vivem com tamanha paixão recíproca. O filme existe num presente imóvel, cada cena valendo por si só (muitas delas diluídas por repetições desnecessárias). É como um vôo tipo 14-Bis: o avião decola, sobe dois metros, desce, repica no solo, sobe de novo, volta a descer, a repicar. Um defeito menor. 2046 tem algo da incomunicabilidade existencial do cinema europeu da época em que está ambientado. Personagens sempre em guarda, que não abrem o jogo, falam em código, buscam-se com ressalvas, repelem-se sem explicações, refugiam-se no silêncio, morrem de sofrer mas não abrem nem prum trem. E o trem que os levava ainda os deve estar levando, porque aquele filme é sem fim.
Um comentário:
Braulio, embora não concorde com o todo da sua (des)crítica ao filme 2046, eu tbm me amarrei nesse filme. Me senti surpreendido a cada momento dentro do Cine Arte UFF, em Nikity (Niterói), onde vivia e ainda estudo. Foi pra mim uma grata surpresa ouvir num determinado momento dentro d’um filme asiático, trechos de músicas que me remeteram de volta aos “cabarés de bandidos” da minha juventude, onde dançava bolerões mela-cueca encoxado c’ minas. Refiro-me às músicas Siboney e Perfídia, a primeira numa magistral interpertação de Connie Francis e a segunda orquestrada por Xavier Cugat.
Abrç.
Ruy Lopes.
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