segunda-feira, 21 de setembro de 2009

1275) O realismo camuflado (14.4.2007)


(A Ceia de Dali)

Dois quadros famosos que exemplificam bem a questão do Realismo são as recriações da Última Ceia de Cristo, por Leonardo da Vinci e por Salvador Dali. O primeiro todo mundo conhece; o segundo pode ser achado no “Google Imagens” sob o título “The Sacrament of the Last Supper”. À primeira vista, a ceia de Da Vinci é realista e a de Dali é fantástica. Na primeira, há um recinto normal, pessoas retratadas de forma costumeira, coisa e tal. Na segunda temos uma sala que mais parece um cenário de ficção científica, com estruturas que ora parecem de metal maciço, ora parecem transparentes; o corpo de Cristo também é parcialmente transparente (podemos avistar através dele os barcos amarrados ao ancoradouro).

Um exame mais demorado, no entanto, nos mostra que não é bem assim. Ambos os quadros são uma mistura equilibrada entre o realismo e o não-realismo (não direi propriamente o Fantástico, mas o Improvável). A Ceia de Da Vinci é um retângulo deitado com uma composição em X, centralizada na cabeça de Cristo. Sempre me intrigou o fato de a gente ver treze pessoas sentadas de um lado só da mesa. O lógico, o realista, seria que estivessem distribuídos em torno dela (como aliás estão, na Ceia de Dali), mas havia na época uma convenção pictórica que fechava os olhos à lógica. A impressão que nos dá é que havia um pintor na Ceia e eles ficaram todos de um lado da mesa para todos poderem aparecer de frente. (Uma situação já satirizada por Luís Buñuel em Viridiana, na cena da ceia dos mendigos, em que posam para uma “fotografia”).

No quadro de Dali, todos os apóstolos têm corte de cabelo moderno, tipo anos 1950, o que diminui seu possível realismo. Mas devemos ter mente que o quadro de Da Vinci é também uma reinterpretação de cabelos, barbas e vestes da época de Cristo, feita no século 15, e nada nos garante que haja uma preocupação realista. A pintura sacra de todos os séculos cansou de mostrar centuriões romanos e apóstolos judeus vestidos nos trajes da época do pintor. Há um traço realista que passa despercebido, mas me parece essencial: as dobras da toalha da mesa. Da Vinci mostrou este precioso detalhe, e Dali aperfeiçoou como só ele sabia fazer. Quando desdobramos uma peça de tecido (toalha, lençol, etc.) vemos nela as marcas da dobra, formando retângulos traçados por vincos alternadamente salientes ou em forma de sulcos. É um detalhe meio imperceptível, mas que nos dois quadros me dá uma sensação de realismo maior do que todo o restante.

Última nota: a ceia de Da Vinci é um dos quadros mais copiados do mundo. As únicas reproduções autênticas são as que mostram, abaixo da figura de Cristo, a parte superior de uma porta, pois a pintura original está na parede do refeitório de uma igreja em Milão. Parte da pintura foi destruída há séculos para a abertura desta porta. Um sacrilégio, mas simbólico: não será o próprio Cristo uma porta, já que ninguém vai ao Pai senão por ele?

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