quinta-feira, 6 de agosto de 2009

1181) Braguinha (26.12.2006)




Morreu o grande Braguinha, aos 99 anos, três meses antes de completar um século. Dá a impressão de que “ficou faltando” algo, mas não me ocorrem muitos exemplos comparáveis de um sujeito que teve uma vida plena e completa. Já citei aqui nesta coluna aquela que considero a melhor frase de Braguinha: “A vida só gosta de quem gosta dela”. Uma frase tão simples e tão irretocável quanto suas canções. Penso em dizer que Braguinha era aquilo que antigamente se chamava um “bon-vivant”, mas esta palavra (assim como sua tradução brasileira: “Fulano é um boa-vida”) tem conotações de “desocupado” e “mulherengo” que talvez sejam inadequadas. Talvez coubesse-lhe como descrição o belo título de um filme antigo de Dino Risi: Aquele Que Sabe Viver.

O doutor Ulysses Guimarães, com seu fino e mordaz humor britânico, costumava dizer: “Eu sou um homem que gosta de viver. No dia em que virem meu enterro passando, podem dizer: Lá vai o dr. Ulysses, fulo da vida”. O destino foi-lhe tão misericordioso que o sepultou no mar, e na imprecisão do mito. Ninguém viu o cortejo fúnebre do dr. Ulysses. Ninguém sabe ao certo se morreu ou se um dia desembarcará de volta para ser reconhecido pelo seu cão Argos. Com Braguinha aconteceu o contrário: foi-se afastando da vida gradualmente, num lento crepúsculo, sendo reconhecido e saudado nas ruas. A última vez que o vi em público foi no relançamento de um musical brasileiro da Cinédia, e ver sua cabeça branca no meio da platéia, assistindo o filme, era como ter ali a presença em carne-e-osso de Ademar Gonzaga ou de Humberto Mauro.

É um desses casos notáveis de compositor superado pelas próprias canções. A maioria dos que hoje lêem seu obituário não sabem quem foi; meia-hora depois poderão estar cantarolando “Balancê” ou “Touradas em Madri”. Braguinha foi rei na época dos fox-trots e dos sambas-canções, consagrou-se no inconsciente coletivo com suas marchas de carnaval, e é parceiro em músicas do primeiro time da MPB como “Carinhoso” e “Copacabana, Princesinha do Mar”. Sem falar, é claro, nas canções infantis: “Pela estrada afora, eu vou tão sozinha, levar estes doces para a vovozinha...” Hoje estão grisalhas as crianças que cresceram ouvindo essas canções, amedrontando-se com o “Lobo Mau”, estremecendo de esperança ao ouvir o coro redentor dos “Caçadores”: “Nós somos os Caçadores – e nada nos amedronta...” Algo me diz que no ano 2106 pequeninas crianças clonadas se deitarão para dormir sendo veladas por uma babá-robô que reproduzirá baixinho estas canções.

A morte é sempre um seccionamento, uma fratura. Sempre nos dá a sensação de algo que estava acontecendo e foi brutalmente interrompido. Poucas pessoas têm a sorte de Braguinha: a de viver sua vida inteira, completa, até o fim, e despedir-se dela com a sensação do dever cumprido e do prazer compartilhado. Como pediu Manuel Bandeira: “Lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.

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