Corria o ano de 1967 e a sessão do Cinema de Arte do Capitólio exibiu o filme japonês O Corvo Amarelo de Heinosuke Gosho (eu nem lembrava mais o nome do diretor; fui procurar agora no Google). No domingo seguinte, reuniu-se o Cineclube de Campina Grande, uma horda de doze ou quinze hipopótamos de diferentes formatos, unidos pela paixão cinéfila. Começou o debate do filme, cujo enredo era sobre um menino abandonado pelos pais. A discussão fluiu até chegarmos a uma cena em que alguns personagens vão embora de uma praia. Depois que partem, a câmara se detém num chapéu de palha que fica abandonado na areia. E surgiu a pergunta terrível: “Por quê?”
Um cinéfilo é um adolescente ungido pelos deuses com a consciência terrível de que num filme tudo é de propósito, nada está ali por acidente. Diferentemente da vida real, onde tudo acontece num trambolhão de acasos que se entrechocam, por trás de um filme existe uma Mente, uma vontade organizadora, que dá ordens à equipe: “Filmem o chapéu abandonado sobre a areia da praia!” E lá estava o chapéu, imóvel como a esfinge da lenda, piscando-nos um olho grego e perguntando: “Por quê?”
Alguém ergueu o dedo e propôs: “O chapéu ficou sozinho, esquecido, abandonado... É o símbolo da solidão do menino”. Outro levantou-se e dissentiu: “Nada disso! Chapéu é proteção. O menino foi abandonado, portanto perdeu a proteção dos pais”. Veio outro e disse: “Vocês estão muito presos à dimensão conteudística. O chapéu tem uma função apenas visual, para enriquecer a imagem da praia, cromaticamente falando”. E veio um mais cínico: “Que nada. O ator esqueceu de levar o chapéu, e o diretor não repetiu a tomada porque tinha pouco negativo”.
Eu voltei para casa tão zonzo que botei um papel na máquina de escrever e usei este filme para escrever minha primeira crítica de cinema, que nunca foi publicada e acabou se perdendo, com dezenas de outras, entre faxinas e mudanças. Imagens enigmáticas de um filme (“O que diabo será que o diretor quis dizer com isto?”) são imagens geradoras de idéias, imagens capazes de desencadear um “brainstorm”, uma tempestade cerebral em que nossos neurônios ficam relampagueando sem parar. A coisa chega a um ponto em que deixa de ser importante responder a pergunta: as respostas que surgem são tão variadas e interessantes que se bastam a si mesmas.
Não digo que esse tipo de reação produz necessariamente uma boa crítica de cinema. Esta deveria ser, idealmente, uma discussão séria e criativa do que é mostrado pelo filme, e não um exercício de livre associação surrealista. Mas esse tipo de discussão mostra um aspecto essencial da criação: ela precisa de um mote, uma idéia geradora, um ponto de partida. É como a sopa de pedras de Pedro Malazarte: o sujeito bota água para ferver com pedras, e vai botando tantos outros ingredientes que a partir de certa altura as pedras podem ser jogadas fora. Agora me respondam: por que é que o corvo era amarelo?
Um comentário:
Só uma correção: o filme foi exibido no "Cine Cultura" do Babilônia e não no "Cinema de Arte" do Capitólio.
Por outro lado, respondo a sua pergunta: o corvo era amarelo porque o filme era colorido.
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