O professor Ancistófeles Cremalheira é uma simpática e folclórica figura que conheci em tempos idos, quando ele trabalhava (deve trabalhar ainda) num desses departamentos culturais de universidade que existem por aí. Claro que o nome dele não é esse, mas não sou besta de botar o nome verdadeiro e depois o sujeito vir me processar, logo numa história da qual não tenho nenhuma prova material. Vamos supor, portanto, que tudo o que se segue é uma parábola inventada por mim num momento de descontração, para comentar certos aspectos da vida cultural do país.
Anos atrás estava eu posto em sossego, aqui no Rio de Janeiro, quando me liga o professor Ancistófeles, apresenta-se, expõe suas credenciais acadêmicas, e me convida para participar de uma Mesa Redonda sobre literatura, numa próspera capital brasileira. Lamenta não poder pagar cachê; oferece-me passagem aérea e hotel. Ora, naquele tempo eu era um cara besta, só cobrava por um trabalho se estivesse precisando de dinheiro. Se tivesse dinheiro no banco, fazia qualquer coisa de graça. Concordei com a proposta, até porque na Mesa Redonda estaríamos três: eu, um autor lá da cidade, e um autor carioca de muito sucesso, digamos que ele se chama Tibúrcio Pestana. Tudo combinado.
Na semana da viagem, encontro por acaso “Tibúrcio Pestana” aqui no Rio, somos apresentados, e eu comento: “Aliás, vamos nos encontrar de novo daqui a dois dias, não é? Na palestra tal e tal”. Ele fez uma cara de espanto, demonstrou ignorar por completo o fato. Por acaso eu tinha no bolso um “folder” que o professor me enviara, mostrei, e ele disse: “Mas é muita cara de pau. Esse pessoal me convidou para esse evento, e eu recusei, porque não tinha cachê. Como têm coragem de botar meu nome?” Sugeri que talvez o folder já estivesse sendo impresso, mas ele retrucou: “Me ligaram dois meses atrás. Eles já estavam imprimindo o folder, há dois meses?!”
A conversa morreu aí. Dias depois viajei, cheguei, fui ao hotel, fui para a palestra. Que era num auditório imenso, da tal Universidade. Cheíssimo. Botando gente pelo ladrão, e pelo jeito da turma, e pelo zum-zum-zum que entreouvi desde a chegada era uma platéia ansiosa pela palestra de “Tibúrcio Pestana”. Na hora H, subimos ao palco eu, o escritor local (um sujeito simpático, inteligente, bom de papo) e... o professor Ancistófeles Cremalheira, que pediu desculpas pela ausência inesperada de Tibúrcio (“ligou-me ontem, ansioso, com um problema grave de doença na família, pediu mil desculpas...”) e comunicou que, a contragosto, e por não dispor de um substituto à altura, ele próprio, o professor Ancistófeles, faria o sacrifício de tentar substituir o ilustre convidado. Eu falei 20 minutos, o escritor local falou outros 20, e o professor falou 45 para um auditório cheio como talvez nunca tivesse tido na vida – ou vai ver que tinha de vez em quando, porque um golpe fácil como esse o cara não aplica uma vez só.
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