terça-feira, 14 de abril de 2009

0976) A fé e o intelecto (3.5.2006)





(Dostoiévsky)

Existem os artistas de fé e os artistas de intelecto. 

Os primeiros tornam-se grandes artistas através da crença constante em si próprios e na existência de uma missão de que foram incumbidos. Por causa disto, freqüentemente, radicalizam seus princípios, tornam-se repetitivos e insistentes, avessos a mudanças, concentrados num objetivo estético que em última análise se confunde com sua própria pessoa. 

Os artistas do intelecto costumam ser ecléticos, cheios de recursos, mas nos dão uma impressão de volubilidade, pouco ou nenhum apego a causas ou idéias específicas. Este tipo costuma ser versátil na execução e disperso nos compromissos, porque é da natureza do intelecto concentrar-se nos meios, não nos fins; nos processos, não nos objetivos.

Os artistas da fé costumam dedicar a vida inteira a uma jornada estética, pela qual suportam muitas vezes a pobreza, a incompreensão, a perseguição política. 

O artista do intelecto muitas vezes arranja um emprego estável numa atividade profissional qualquer, e se dedica a ela com a naturalidade de quem vê naquilo uma tarefa a mais, e não uma prostituição de sua Arte. 

Para o primeiro, nada deve afastá-lo da Obra que ele sente ser seu dever trazer ao mundo. 

Para o segundo, qualquer coisa que ele faça já faz parte dessa obra, ou ajuda a financiá-la, por mais dissímile ou trivial que pareça.

Os artistas de fé são muitas vezes, de acordo com o ambiente social e a época em que vivem, arrebatados por convicções políticas ou religiosas, cuja intensidade de sentimento e concentração de foco parece corresponder ao seu modo instintivo de ver a vida. 

Já os artistas do intelecto costumam ser exageradamente críticos em relação a sentimentos transcendentais. São grandes individualistas, mesmo quando são individualistas dotados de um humanismo solidário. Desconfiam das grandes causas; seu entusiasmo é frequentemente tolhido por um ceticismo distanciador.

Nos termos acima, não vejo outra maneira de classificar pessoas como Van Gogh, Dostoiévski ou Augusto dos Anjos senão como artistas de fé; e pessoas como Luís Buñuel, Jorge Luís Borges ou Pablo Picasso como artistas do intelecto. 

Note-se que não falta intelecto a uns nem fé aos outros, mas o modo como procuro vê-los aqui é tentando identificar qual a força interior que os animava de maneira mais substancial e constante ao longo de suas vidas. 

Podemos imaginar como seria a obra de escritores intensamente intelectuais como Georges Perec, Nabokov ou Machado de Assis, caso fôssem animados por uma fé intensa em algo. 

Não digo que fossem indivíduos superficiais ou apáticos, mas os escritores desse tipo parecem ter uma vocação para o distanciamento, a observação afastada, a contemplação da tragédia humana (ou comédia, conforme o momento) por parte de alguém que não se envolve, que não se emociona muito, que mantém o seu próprio mundo interior sob uma cuidadosa couraça protetora.






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