sábado, 21 de fevereiro de 2009

0826) A questão das pirâmides (9.11.2005)




Todo mundo tem o direito de cultivar idéias contraditórias, e digo mais: tem o dever de fazê-lo. É como ter dois empregados que não gostam um do outro. Você sai de casa e fica tranqüilo, porque, a cada coisa errada que um fizer, o outro vem e denuncia.

Ter idéias antagônicas faz com que a gente não se deixe engambelar facilmente por uma delas, porque a outra rapidinha mete os pés: “Peraí, rapaz – tás esclerosando?”

Presente caso: sou um grande admirador das Pirâmides do Egito, mas se eu fosse vivo na época, teria sido um adversário mortal do projeto. Como é que é? Construir uma sepultura com um milhão de pedras pesadíssimas, botando o operariado egípcio para trabalhar 20 anos debaixo de chicote? De jeito nenhum. Sou contra.

Alguém viria me sussurrar: “Mas foi o Faraó quem mandou, e o homem é brabo!”. Ora, esta seria mais uma razão para ser contra. Não é por acaso que o termo “obra faraônica” grudou nesse tipo de construção gigantesca, caríssima, desnecessária, feita apenas para a vaidade e o deleite (e em muitos casos o enriquecimento escuso) de um grupinho de sujeitos.

Pensem na maior catedral do mundo, a da Costa do Marfim; nela cabem 300 mil pessoas. Pode ser bonita (foi planejada como uma réplica da Basílica de São Pedro), mas pergunto eu: tinha necessidade desse despropósito?

Neste momento, a Idéia Antagônica ergue a cabeça, como o vigilante periscópio de um submarino. “Peraí, poeta... então você é a favor de que essas obras arquitetônicas não existissem? Preferiria ver no lugar delas o-canto-mais-limpo, a aridez do deserto?”

O argumento é forte, reconheço. Depois que essas coisas são construídas, a gente esquece o que custaram em sangue, suor e vidas, e fica pensando apenas no resultado estético, que não é de se jogar fora. Mas vejam – isto é um ponto de vista egoísta, típico da nossa cultura hedonista, consumista, ególatra. Que importância tem a morte de 30 ou 50 mil egípcios, milênios atrás? Já morreram mesmo, então, eles que se danem! Importa que temos hoje a chance de olhar aquelas construções monumentais, tecer teorias, tirar fotos, escrever livros... É para nosso deleite que elas existem, e o resto é irrelevante.

Quando eu olho a beleza do Taj Mahal, da Giralda de Sevilha, da Muralha da China, penso também no sofrimento que pôs de pé aquilo tudo. Penso no poema de Brecht que diz: “Quem construiu Tebas das Sete Portas? Os livros trazem os nomes dos reis; mas foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?”

Mil anos depois que os operários viraram pó, é fácil esquecê-los. As grandes obras são experiências-limite da humanidade, em que um excesso de exploração, ambição, riqueza-concentrada, produz (eventualmente, de vez em quando) obras de excessiva beleza. Deveríamos preferir este mundo, ou um mundo sem grandes monumentos, mas onde soubéssemos que alguns milhares de egípcios viveram uma vida longa, milênios atrás? Um mundo de beleza convulsiva e dolorosa, ou um mundo sem sustos, sem sofrimentos?








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