terça-feira, 6 de janeiro de 2009

0724) Os clichês (14.7.2005)




A certa altura de todo curso de Jornalismo, um professor manda a turma redigir um trabalho qualquer, e depois que os recolhe manda alguém ir ao quadro e ir anotando as expressões que ele ditar. E vai dizendo: “ferragens retorcidas... os bravos soldados do fogo... tórrido romance... corpo escultural... posição privilegiada...” 

Depois, ele faz cada aluno jurar sobre a Bíblia (ou sobre o Manual de Redação e Estilo) que jamais voltará a usar estas expressões. São clichês. São lugares-comuns. São junções de substantivos e adjetivos que um dia, quando foram usadas pela primeira vez, provocaram no leitor um agradável susto-de-novidade. 

Hoje, depois de milhões de repetições, são um sintoma claro de preguiça, ou de falta de vocação. Caneta vermelha em punho, caros leitores! Toda vez que eu usar um clichê, corrijam-me sem dó nem piedade. O Brasil agradece.

“Sem dó nem piedade”, aliás, é um belo dum clichê, concordam? Eles são invisíveis e onipresentes, e só damos pela sua existência quando estamos à sua procura. Basta escrevermos pensando noutro assunto, e eles desabrocham que é uma beleza. Não os vemos porque eles fazem parte da paisagem, como os postes de luz e os orelhões. 

Aprendemos a contar com eles, porque são expressões previamente decodificadas, que nos eximem de pensar. Por exemplo: acabei de usar o termo composto “susto-de-novidade”, o qual, aposto, vocês não encontrarão em nenhum dicionário, e talvez nem mesmo no Google. É uma expressão rara, mas de sentido imediatamente perceptível. (É também uma expressão metalingüística: a reação que produz em nós é seu próprio significado) Se eu continuar a usá-la, ela se tornará familiar. Se todo mundo começar a usá-la, daqui a poucos anos será um insuportável clichê.

É conhecida a anedota sobre o sujeito leigo que foi assistir o Hamlet pela primeira vez, e saiu queixando-se de que a peça estava cheia de clichês: “Ser ou não ser... Algo de podre no reino da Dinamarca... O resto é silêncio...” 

As grandes frases, quando se popularizam, viram clichê. É o perigo de autores como Nelson Rodrigues, cujas frases extremamente criativas acabaram virando clichês: óbvio ululante... calçar as sandálias da humildade... elas gostam de apanhar... o olho rútilo e o lábio trêmulo... Parem de repeti-las, amigos. Passou do ponto. Deixem que repousem apenas nas páginas imortais (olha o clichê) do velho Nelson.

O clichê serve de atalho, quando estamos com preguiça de pensar e queremos chegar logo ao ponto principal. Mas, por que não pararmos para pensar neles? Seria um bom exercício nas faculdades: invente uma nova maneira de dizer um clichê. Não é possível que entre 40 alunos não surja pelo menos uma boa idéia! 

Quem criou um clichê não o criou do nada, e sim a partir de uma situação, um fato concreto, uma associação de idéias. Este processo pode ser refeito para produzir um resultado novo, desde que você seja um redator de mão-cheia. (Olha o clichê!)






2 comentários:

Guga disse...

Engraçado que do primeiro parágrafo em diante, eu comecei a procurar clichês no texto. Quando achava (!) tinha parênteses de "olha o clichê" na frente :).
- Droga, foi de propósito. :(

Joice disse...

Nunca tinha pensado nisson Ótimo texto