terça-feira, 6 de janeiro de 2009

0721) Onomatopéias musicais (10.7.2005)





Rola por aí uma discussão antiquíssima sobre a diferença entre poema e letra de música. A diferença, por suposto, existe. O problema que eu vejo na discussão é que os praticantes do poema-de-livro insistem em afirmar que este é sempre e necessariamente superior à letra de música. É uma espécie de “direito adquirido” ou “sangue azul”: versos que apareçam num livro pertencem a uma casta literária superior à dos versos que aparecem numa canção-cantada. Já falei do assunto aqui. Para mim, é o velho preconceito bacharelesco, tão brasileiro, de considerar que “as Letras” dão uma imediata superioridade intelectual a quem as pratica.

Meu pai era um que não perdoava. Toda vez que a gente ouvia no rádio uma dessas músicas brasileiras que se estendem em refrões do tipo “ô-lê-lê, ô-lê-lê-ô”, ou “laraiá, laiá, laiá”, ele dizia: “Mas que coisa impressionante! O camarada deve ter passado uma noite inteira acordado, pensando, para ter a idéia de dizer uma coisa tão profunda”. Diplomado na escola do soneto, para ele o ato de entoar sílabas sem sentido era uma perda de tempo, e uma prova de indigência mental.

Ledo engano, Seu Nilo. A letra de música pede muitas vezes essas onomatopéias musicais, esses sons que nada querem dizer e que em contrapartida nos dizem tanta coisa. Dizem pela nudez sonora desses fonemas, despidos do seu verniz dicionário, que retornam à função primitiva de sons que são apenas sons. Quem lhes confere sentido não é uma carga simbólica consensualmente prefixada, mas a emoção nua e crua da voz que os entoa. Coloquei a palavra “primitiva” de propósito, com seu duplo sentido de rudimentar e de essencial, básico, comum a todos.

Vocês se lembram daquele samba de Beto Sem Braço e Aluísio Machado para o Império Serrano no carnaval de 1982: “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”. É a descrição da cadência marcada pela bateria da Escola, uma tentativa de descrição fonética do som produzido pelos percussionistas. Citado no meio de uma conversa como mera ilustração, foi tão marcante que virou enredo da escola e refrão do samba. Nunca o escuto sem me lembrar do famoso grito de guerra do rock: “A-wop bop a-loo bop a-wop bam boom”. O que diabo quer dizer isto? Nada, escrito num papel. Um monte de coisas, se você vir Elvis Presley ou Little Richard explicando com o corpo do que se trata.

Os Demônios da Garoa cantavam “Can-Gans-Cans, Gans-Culans” no refrão de “Saudosa Maloca”; isso incomodou tanto os puristas do dicionário que tentaram substituir o refrão pelo patético “Joga as cascas pra lá”. Esta é uma manobra característica da mentalidade não-musical. Há pessoas que ficam profundamente perturbadas diante de sons que nada significam, principalmente se o sujeito que emite estes sons parece estar se divertindo à beça. Estas pessoas terão sempre uma relação difícil com a música, com a letra de música, e com tudo que depender de uma presença física humana para ser plenamente compreendido.




2 comentários:

Cris disse...

Que maravilha! Nunca fiquei tão feliz de ver alguém defender um ponto de vista contrário ao meu - e me convencer de que o meu era mero preconceito. Obrigada.

Braulio Tavares disse...

Não sei se é preconceito mesmo, às vezes a gente se acostuma a dizer algo (eu sou assim) apenas porque nunca parou pra pensar. Quando vê uma opinião contrária, e para, e pensa, muda de idéia. Eu faço isso sempre que valer a pena.