quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

0702) A flor de Feynman (18.6.2005)



Um dos clichês mais irritantes que vejo por aí é quando alguém diz que os cientistas são indivíduos frios, objetivos, sem sensibilidade e sem emoções. “Como?! O sr. é químico, e gosta de música clássica? Mas que coisa surpreendente!” Alguém que diga coisas desse tipo perde algumas centenas de pontos em meu conceito. Um dos meus heróis no mundo da ciência é Richard Feynman, que ganhou um Prêmio Nobel de Física, e foi um dos indivíduos mais inteligentes, informais e irreverentes que a ciência americana já produziu. Recomendo com insistência sua autobiografia, Surely you’re joking, Mr. Feynman!, da qual há uma tradução portuguesa, Certamente está a brincar, Sr. Feynman! O título tem tudo a ver com o personagem. Feynman costumava dizer ou fazer coisas que chocavam, escandalizavam ou deixavam perplexas as pessoas; coisas que num primeiro instante pareciam absurdas. E que depois, bem examinadas, mostravam ser verdades límpidas, lógicas, irretorquíveis.

Falei no Prêmio Nobel para não pensarem que Feynman era um maluco-beleza, porque em seu livro ele conta como andava de quatro pelo tapete para descobrir se farejava tão bem quanto um cachorro, ou como, quando estudava em Princeton, passava dias examinando o comportamento das formigas para saber como elas tomavam decisões. Ou como fazia cálculos de cabeça que deixavam espantados os colegas, usando truques simples de substituição; ou como desenvolveu uma técnica própria para descobrir a combinação de um cofre. Feynman morou no Brasil e tocou tamborim numa escola de samba, mas... esta é outra história.

Em outro livro, The Pleasure of Finding Things Out: The Meaning of it All, Feynman se queixa de um amigo seu, artista, que diz: “Vocês cientistas não sabem entender a beleza de uma flor: vocês pegam a flor e separam parte por parte, até ela perder a graça”. Ele diz: “Ora, tudo que outras pessoas vêem numa flor eu também vejo, mas vejo muito mais. Eu posso imaginar as estruturas das células lá dentro, e ver como são bonitas. A flor tem beleza numa escala de centímetros, mas também numa escala muitíssimo menor. O fato de que a flor é capaz de desenvolver cores para atrair insetos também é interessante. Isto quer dizer que os insetos enxergam as cores. Será que eles têm também um senso estético? Como se vê, o conhecimento científico só faz aumentar a beleza e o mistério das coisas, não vejo como possa diminuí-lo”.

Eu me arrisco a dizer a Feynman que ele talvez não tenha percebido que grande parte das pessoas que elogia a beleza não se interessa por ela. Gostam das flores e dos crepúsculos como um enfeite para seu lazer, como algo que está ali com a função de proporcionar-lhes deleite. Grande parte da apreciação estética não tem nada dessa curiosidade desinteressada de Feynman. É apenas uma fruição egoísta de um prazer socialmente encorajado. Um sujeito só acha mesmo que uma flor é bonita no instante em que admitir que a flor é tão importante quanto ele.


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