(Van Gogh, "Noite Estrelada")
Como sou um cara de temperamento noturno, sempre me incomodei um pouco com a mania das pessoas de identificar as trevas com o Mal. A escuridão é sempre associada ao medo, à ignorância, ao perigo, à maldade, à tristeza. Entendo perfeitamente, mas, como ocorre com toda associação de idéias, ela também pode ser virada às avessas. Tomo como exemplo a frase de Emerson sobre o céu estrelado. Diz ele que se nunca pudéssemos avistar o céu noturno, e um dia de repente isto fosse possível, os homens ficariam deslumbrados e entoariam cânticos de louvor a Deus pela beleza de sua criação. Isaac Asimov inverteu esta plausível proposta em seu conto “Nightfall”, onde descreve um planeta num sistema de sóis múltiplos, onde, em virtude disto, nunca anoitece. Um dia, uma conjunção de órbitas faz com que um lado do planeta fique às escuras: ao ver as trevas infinitas e as estrelas faiscantes, o planeta mergulha no caos e no terror. E é uma possibilidade tão plausível quanto a outra.
Eu não troco uma noite estrelada por todos os sóis de verão deste mundo, e uma coisa que me incomodava muito no tempo da ditadura militar era a mania da MPB em compará-la à noite, e ficar falando “no dia que vai chegar”, “o sol que vai raiar”, “esta noite vai ter fim”... Meu amigo! Eu acho uma beleza, do ponto de vista visual, a aurora dedirrósea erguendo-se no Oceano Atlântico, mas, pela parte que me toca, o fim de uma noite é sempre uma má notícia.
Pois saibam os adeptos da Luz que a Luz é que precisa ser vista à distância. A Luz queima, a Luz mata, ou pelo menos queima e mata àqueles que, iludidos pelo seu brilho enganador, querem nela mergulhar. Perguntem às mariposas de Adoniran Barbosa! Luz é para a gente circular em volta dela, e não para mergulhar de ponta-cabeça como fazem as moscas de botequim naquele néonzinho azul onde se suicidam. Vejam por exemplo o caso de Lúcifer, o anjo da luz, que quis se transformar na Luz propriamente dita e como castigo acabou ricocheteando para o fundo das trevas. O sonho mais vão da Humanidade é tocar a Luz. Mas ninguém toca impunemente o Fogo; e não lembro de parábola mais bela dessa nossa ambição infantil do que o conto de Ray Bradbury “Os Frutos Dourados do Sol”, onde uma espaçonave vai até o Sol para colher seu fogo e trazê-lo à Terra.
“A luz assassinava demais”, diz Guimarães Rosa no Grande Sertão. Quem já teve as retinas crestadas pela fornalha nuclear que crepita no zênite sertanejo é capaz de ver na noite um Paraíso, nas trevas uma bênção divina. As trevas são como um sono para um corpo cansado, como o silêncio para ouvidos massacrados pelas cacofonias urbanas. Vivemos numa época cruel, pragmática, interesseira, onde o fazer é considerado um Bem absoluto comparado ao não-fazer; daí que palavras como “escuridão” e “silêncio” pareçam a negação da Vida, quando na verdade são a parte oásis dela.
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