Acho que a maioria das pessoas, a esta altura, conhece pelo menos de ouvir falar a história de Franz Kafka intitulada A Metamorfose, que começa assim: “Certa manhã, ao despertar em sua cama de um sono inquieto, Gregor Samsa percebeu que tinha se transformado em um inseto monstruoso”. Para analisar e interpretar esta história os críticos já gastaram tinta que encheria um Açude Velho. Recentemente tomei conhecimento de uma carta escrita por Kafka em 25 de outubro de 1915 para seu editor, Kurt Wolff Verlag, em que ele diz:
“Prezado Senhor: O sr. mencionou recentemente que Ottomar Starke será o autor de ilustrações para A Metamorfose. Na medida em que conheço o estilo do artista, essa possibilidade me causou um pequeno e talvez desnecessário receio. Ocorreu-me que Starke, como ilustrador, poderia tentar desenhar o inseto propriamente dito. Isto não, por favor, não! Não quero impor-lhe restrições, mas apenas fazer este pedido devido ao conhecimento mais profundo que tenho da história. O inseto não pode ser representado. Não pode sequer ser visto à distância.”
Temos (todo leitor tem) uma capacidade inesgotável de imaginação para o monstruoso. O problema é quando um ilustrador, que também a tem, usa a sua, e acaba por bloquear e inibir a nossa. O pedido de Kafka é mostra de sua sensatez e de seu entendimento profundo de como funciona uma narrativa fantástica ou de horror. E me trouxe à mente o conto lovecraftiano de Jorge Luís Borges “There are more things” (em O Livro de Areia). Nele, o narrador descobre que a mansão que fôra de seu tio tinha sido alugada por um inquilino misterioso, que ninguém até então avistara pessoalmente. Uma série de indícios leva-o a crer que se trata de um ser alienígena e monstruoso. À noite, ele entra às escondidas na casa, quando o inquilino está fora, e descreve o que viu:
“Lembro agora de uma espécie de grande mesa operatória, muito alta, em forma de U, com cavidades circulares nos extremos. Pensei que podia ser o leito do habitante, cuja monstruosa anatomia se revelava assim, obliquamente, como a de um animal ou de um deus, por sua sombra.” Sugerir o Monstro por traços indiretos é mais eficaz do que descrevê-lo com precisão fotográfica: cada leitor julgará entrever (cada leitor, a cada nova releitura) o Monstro que seu medo e seu desejo lhe sugerirem.
No fim do conto, o protagonista prepara-se para deixar a mansão quando percebe que o inquilino monstruoso está de volta, e que a porta da rua fora deixada aberta. E o conto termina assim: “Meus pés tocaram o último lance da escada, quando senti que algo subia pela rampa, opressivo e lento e plural. A curiosidade pôde mais do que o medo, e não fechei os olhos.” A curiosidade sempre pode mais que o medo, e ambos são os maiores estímulos para a imaginação. O autor fornece a situação: nós fornecemos o Monstro, e ele sempre tem algo de nosso próprio rosto.
2 comentários:
Meus monstros ficam presos na caixa, e são manifestados como sombra. Depois descubro que não passam de agressividade, do socialmente inaceitável e de ódio. Mas são parte de mim, e me sinto culpado em expurgá-los.
Será que Kafka tinha uma idéia parecida com a minha sobre os próprios monstros?
De um modo geral, quando a gente escreve ou desenha algo que nos inquieta, ganha um certo poder sobre ele. É um ato de magia. Não escrever/desenhar é continuar sob o poder do monstro. :-)
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