segunda-feira, 21 de julho de 2008

0451) A porta de entrada (29.8.2004)




Muitas vezes a gente se decepciona com um autor apenas porque tentou acessar sua obra pela porta errada. Nem toda porta serve como porta de acesso ao trabalho de um escritor (músico, cineasta, etc.). 

Meu total desconhecimento da obra de determinados figurões da literatura ou da filosofia se deve a este detalhe crucial. Inventei de ler o livro mais famoso, e acontece que ele era também o mais complicado. 

É o caso de James Joyce, por exemplo. Quem tentar se aproximar dele através de Ulisses vai dar com a cara na porta, e uma porta do tamanho da Muralha de Tróia. Leiam os contos de Dublinenses, meus camaradas. São pequenos quadros da vida cotidiana da cidade, com uma linguagem rica em visualização e sensorialidade, finura psicológica, olho fino e irônico para as convenções sociais. 

Depois, pode-se passar para o Retrato do Artista Quando Jovem, cuja linguagem é mais cheia de curtos-circuitos, e que introduz temas e personagens expandidos no Ulisses. O qual será um livro mais aberto, depois de lidos estes dois.

Guimarães Rosa é a mesma coisa. Milhares de incautos perderam-se na veredas do Grande Sertão, ou na ilusória brevidade dos contos de Tutaméia, que é justamente o livro onde a linguagem de Rosa está mais maneirista, mais rococó, mais churrigueresca. O melhor acesso é através dos contos de Sagarana, depois os de Primeiras Estórias e finalmente nas noveletas de Corpo de Baile (hoje desmembrado em 3 volumes).

Quando um autor fica famoso, publicam-se até os seus erros de mocidade, aqueles livros de aprendiz que o sujeito sempre se arrepende de ter escrito. O leitor que não o conhece fica perdido diante de uma estante inteira de títulos disponíveis, cada um dos quais descrito na contracapa como uma obra da maior importância. Sem saber a quem perguntar, o leitor faz um puxa-o-rabo-do-tatu com seus botões e acaba comprando um livro que se revela como o mais difícil, ou o mais chato, ou o mais irrelevante. 

Minha apreciação da obra musical de Frank Zappa ficou comprometida durante muitos anos pelo fato de que o primeiro disco que escutei foi Reuben and the Jets, que é uma sátira aos conjuntinhos pop. Fiquei perplexo: “Oxente, é esse o cara que chamam de gênio patafísico da vanguarda do rock?” Só tentei de novo dez anos depois. 

Imagino a decepção de quem tente conhecer Bob Dylan ouvindo o Self Portrait, Alfred Hitchcock assistindo Topázio, ou Agatha Christie lendo O mistério dos sete relógios.

A melhor porta de entrada para os Beatles, por exemplo, é Rubber Soul. O disco é uma bela amostra dos roquinhos mais bobos, das baladas irretocáveis (“Girl”, “Michelle”) e abre o caminho para a maturidade futura com “Nowhere Man”, “In My Life” e “Norwegian Wood”. 

Ouvindo-o, ficamos sabendo tudo de que os caras são capazes, e qualquer outro disco não soará totalmente estranho. Nem sempre a melhor obra para se iniciar uma convivência é a primeira, ou a mais importante, ou a mais simples.





2 comentários:

Wandecy Medeiros disse...

É, vamos dizer que esse disco é o que normalmente se chama de "divisor de águas", pois as músicas já diferem bastante da fase inicial da banda, mas ainda não está no nível daquelas músicas irretocáveis que vieram depois, no entanto, em se tratando de Beatles,quase tudo vale a pena ser escutado.

Anônimo disse...

O LADO B de A Hard Day's Night tem pérolas... Os artesãos tinham personalidade. (LRG)