segunda-feira, 10 de março de 2008

0179) Os americanizados (17.10.2003)

Sou capaz de apostar que se entrarmos numa favela em qualquer metrópole brasileira, de São Paulo a Recife, de Belo Horizonte a Porto Alegre, vamos encontrar um garoto preto, subnutrido, descalço, mastigando um picolé de morango e usando uma camiseta suja onde está escrito: “Columbia University”. Num bairro mais adiante, se pararmos para tomar um refrigerante diante do grupo escolar ou do Ciep local, vamos ver sair da aula um outro garoto, branco, ou preto, ou mulato, mas mais limpo, mais arrumado, livros embaixo do braço, vestindo o inevitável bermudão e usando uma camiseta onde está escrito: “Chicago Bulls”. À noite, se entrarmos num apartamento da Zona Sul, talvez encontremos um terceiro rapaz que poderia ser irmão mais velho dos outros dois, ouvindo um CD e vestindo uma camisa com o nome de uma banda como “Wallflowers” ou “Linkin Park”.

O primeiro menino não tem a menor idéia do que seja a Universidade de Columbia. Veste aquela camisa porque foi a única que alguém lhe deu. O segundo sabe quem são os Chicago Bulls: é o maior time de basquete do mundo, o time de Michael Jordan. (Não é mais, mas é a mesma coisa do Santos de Pelé, continua existindo) O terceiro provavelmente não apenas sabe que banda é aquela como tem os discos, conhece os integrantes, canta as músicas. São estágios sucessivos no que o pessoal chama “a americanização” da juventude brasileira. O curioso é que uns acham essa americanização a primeira trombeta do Apocalipse; para outros ela é um grito de vitória, mistura de “independência ou morte” com “abre-te sésamo”.

Quando alguém veste uma camisa onde está escrito um nome que não conhece, ele está abrindo uma janela em si mesmo. Está entrando num lugar desconhecido, tomando posição num ritual cuja finalidade ignora, bebendo num copo sem saber o que tem dentro. Vestir uma dessas camisas esfregar uma lâmpada mágica sem saber o que vai brotar dali, se é um gênio que concede três desejos ou um dragão de fogo que carboniza o descuidado. Não importa. A curiosidade é maior do que a cautela. Ele sabe que existe um mundo lá fora, além do seu entendimento, e que esse mundo se exprime através de palavras em inglês. Ele até poderia dizer: “Não, obrigado, não quero, só me interessa o que já conheço, só me interessa o que já é o meu mundo.” Mas ele diz: “Eu queria saber o que é isso. Eu queria experimentar. Me mostre.”

Abrir o próprio espírito e deixar que seja invadido pela imensidão do mundo é o gesto mais desprendido, mais indefeso e de mais grandeza que um ser humano pode ter, e esse gesto de quase inconcebível coragem é mais praticado por jovens do que por homens e mulheres maduros. A única recompensa justa para essa coragem seria dar-lhes a escolher não apenas camisetas norte-americanas, mas que pudessem escolher também camisetas (e mitologias) chilenas, húngaras, espanholas, mexicanas, indianas, argentinas, portuguesas, irlandesas, russas, palestinas, judias. O mundo é grande.

Um comentário:

Renata Elis disse...

Sim, o mundo eh grande, mas a mentalidade dos que vivem nele nem sempre eh grande...