segunda-feira, 10 de março de 2008

0175) África Eletrônica (12.10.2003)



(Itamar Assumpção)

Os anos 1950-2000 serão conhecidos no futuro como o momento em que a música fonográfica (a que é gravada em discos e executada em rádio e TV) criou o primeiro canal efetivo de comunicação entre as comunidades negras espalhadas na Europa, na América e na sua África de origem. Essa música criou em poucas décadas um canal mais poderoso que o cinema, a literatura, as outras artes.

O rock teve um papel curioso nesse processo. Para onde ele foi, levou consigo o sistema de “pacotes” (“Para você comprar o que quer, vai ter que levar esses outros produtos também”), bem como toda a auto-referencialidade da cultura de massas, onde cada obra é comentário, citação, paródia, refutação ou homenagem a obras preexistentes. 

Desse modo, qualquer adolescente não-negro e de classe média, fosse na Alemanha, no Brasil ou no Japão, ao comprar discos de branquelos como os Beatles ou os Rolling Stones estava sendo indiretamente exposto, e tornado vulnerável, à música de negros como Chuck Berry, Little Richard, Robert Johnson, Leadbelly, Muddy Waters e tantos outros.

Existe uma fascinante coreografia de ricochetes culturais nesse processo. 

Os escravos levados para o Sul dos EUA criaram o Jazz, que é o encontro entre a criatividade improvisadora do negro africano com a escala musical européia, simbolizada no piano. 

O Jazz começou nos EUA como música que os negros dançavam e os brancos ouviam. Ao ricochetear da América para a Europa após a II Guerra Mundial, conquistou a intelectualidade francesa, muito mais aparelhada para reconhecer a sofisticação daquela música do que a indústria fonográfica dos Estados Unidos. 

Os franceses, curiosamente, sempre têm apadrinhado e avalizado filosoficamente muita coisa da cultura popular americana (de Edgar Allan Poe a David Goodis, e dos faroestes de John Ford às comédias de Jerry Lewis).

No caso do Brasil, nosso impacto sobre a Europa começou a se dar nos últimos 20 anos, mas tem tudo para crescer. 

Os elementos africanos abrasileirados que levamos para lá (nas músicas de João Bosco, Milton Nascimento, Lenine, Djavan, Chico César, Jorge Benjor, etc.) se confrontam com a música feita por europeus negros, filhos das antigas colônias européias na África. 

Em Londres e Paris fervilha uma música étnica que tem um vigor desmedido em relação à faixa mais conservadora e comercial com que concorrem (a cançoneta francesa, italiana, etc.). 

Uma outra ponte muito valiosa é a que foi feita com o reggae jamaicano, que no fim dos anos 1970 tomou de assalto a Bahia, principalmente através da ação de Gilberto Gil, e depois abriu uma nova frente com as “radiolas” do Maranhão.

A música negra, depois de se apossar do piano e da escala musical branca, apossou-se da guitarra elétrica, e agora se apossa dos recursos eletrônicos. A África Eletrônica que se espalha pelo mundo virá a ser a criadora da síntese musical mais importante de todas: uma música que se possa dançar com entusiasmo e ouvir com respeito.





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