domingo, 9 de março de 2008

0135) A arte de decorar (27.8.2003)



(ilustração: Virgil Finlay)

Aprendi a decorar sonetos quando tinha 9 ou 10 anos. Depois de muitas tentativas, criei um método que uso até hoje. Leio em voz alta a 1ª linha. Depois leio a 1ª e a 2ª. Depois, a 1ª, a 2ª e a 3ª. E assim por diante. Isto significa que quando eu ler a última linha, a 14ª, já terei repetido a primeira treze vezes, a segunda doze, e assim por diante. Se o soneto fizer um mínimo de sentido, qualquer ser humano normal fica com uma idéia razoável dele. Depois, faço uma “grade” vertical com as rimas de cada estrofe. Amoníaco, rutilância, infância, zodíaco. Hipocondríaco, repugnância, ânsia, cardíaco. Ruínas, carnificinas, guerra; roê-los, cabelos, terra. Depois gravo o início de cada estrofe: “Eu, filho... Profundissimamente... Já o verme... Anda a espreitar...” E pronto. Meia horinha, não mais.

A memória é como um músculo: a prática constante a desenvolve, a inatividade a atrofia. Sherlock Holmes comete um grande equívoco (o seu único, ao que eu saiba) quando diz, em Um estudo em vermelho, que a memória humana é como um sótão, cuja capacidade é limitada e cujas paredes não são elásticas, de modo que “chega um momento em que para a aquisição de novos conhecimentos é necessário eliminar conhecimentos já estocados.” Nada mais falso. A memória não é um espaço a ser preenchido, são processos que devem ser estimulados. Todo estudante desenvolve seu próprio método para decorar declinações do latim ou tabelas de valência de elementos químicos. Não existe método universal: cada mente tem um perfil diferente. Uns têm memória visual, outros memória auditiva (precisam dizer em voz alta), outros têm memória associativa...

Muita gente se admira ao ver cordelistas que sabem de cor dezenas de folhetos. E por que não? Um folheto tem a mesma cadência do começo ao fim, tem rimas, e geralmente conta uma história. Tudo ali se encadeia, tudo facilita a memorização do que vem a seguir. Difícil é decorar uma lista aleatória de nomes ou de números. Decorar poesia, decorar falas de teatro ou de cinema, é moleza. (Não, não é moleza. Mas existe um caminho, uma lógica, um fio de coerência; basta segui-lo)

Um dos piores efeitos da civilização é perdermos a capacidade de decorar. Todo mundo tem agenda de papel, agenda eletrônica, telefone com memória. E precisamos disso tudo para lembrar o telefone de uma pessoa para quem já ligamos inúmeras vezes. Quantos de nós sabem de cor a própria identidade, o CPF? Confiamos nas anotações escritas, e com isso nosso cérebro vai minguando. Quando alguém vai nos dar seu endereço, perdemos um tempo enorme à procura de lápis e papel, só para anotar: Rua dos Coqueiros, 155, apartamento 201. É neste sentido que as máquinas vão destruir nossa civilização, não no sentido Schwarzeneggeriano do termo. Há um conto ótimo de Isaac Asimov onde ele mostra um gênio matemático do futuro, um cara que consegue multiplicar números de cabeça (25 x 32, etc.)! Eu diria que esse futuro já chegou.


Um comentário:

Abel Fernandes disse...

Ótimo artigo sobre memória e memorização. Adorei!Concordo com tudo. Recomendo!