sábado, 8 de março de 2008

0102) Quem foi Harry Smith? (19.7.2003)




Numa entrevista aos 53 anos, ele afirmava nunca ter pago impostos, nunca ter votado, nunca ter tirado carteira de motorista, nunca ter servido ao exército. Vestia apenas roupas jogadas fora, e estava com o aluguel sempre atrasado. Dizia que sua vida sexual limitava-se à masturbação. 

Durante uma época de sua vida, inventou uma dieta à base de apenas manteiga e açúcar, e quase morreu de fome. Perdeu todos os dentes porque se recusava a ir ao dentista. Pedia dinheiro emprestado a todo mundo, e nunca pagava.

Parece o retrato perfeito de um doido ou de um vagabundo, mas o nome de Harry Smith (1923-1991) aparece nos lugares mais imprevistos, e sempre cercado de admiração. 

Tendo se interessado por antropologia na adolescência, estudou na Universidade de Washington, e dedicou-se desde cedo a gravar em fita magnética canções e rituais indígenas, além de compilar vocabulários e reunir objetos de artesanato. Colecionou colchas de retalhos dos índios Seminole, ovos de Páscoa ucranianos, e gabava-se de ter a maior coleção de aviões de papel do mundo (que depois doou ao Museu Aéreo e Espacial do Instituto Smithsonian). 

Era um especialista em “figuras de cordel”, uma arte de fazer complexas figuras esticando uma peça de barbante entre os dedos. Dizia ele ser esta a única arte presente no mundo inteiro, além da música.

Por falar em música, também foi colecionador de discos em 78 rpm, que comprava pelo país afora, a preço de banana, quando a Grande Depressão quebrou milhares de lojas e gravadoras. 

Usando sua coleção, compilou e lançou em 1953 a impressionante Anthology of American Folk Music, seis LPs reunindo um total de 84 canções praticamente esquecidas, que ajudaram a decolar o movimento da música “folk” norte-americana dos anos 60, com Bob Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e outros. Era a memória musical e cultural de uma América que a América urbana ignorava. Em 1991, Smith recebeu um Prêmio Grammy por sua contribuição à música americana.

Como sobrevivia? Não se sabe, mas por muitos anos viveu de descolar verbas para fazer cinema. Não o cinema de Hollywood, mas complexos curta-metragens de animação com técnicas desenvolvidas por ele mesmo. Seus filmes eram objeto de culto, provocavam espanto nos festivais, e são citados em qualquer estudo sobre o cinema “underground” ou de animação nos EUA. 

Era estudioso da Cabala e do Ocultismo, e um tremendo inventor de histórias; dizia às vezes ser filho de Aleister Crowley com a Princesa Anastasia da Rússia.

Seu livro de entrevistas Think of the Self Speaking mostra a maneira impressionante como sua mente percorria sem parar os caminhos mais tortuosos. No espaço de dois parágrafos ele passa por jazz, poesia beatnik, literatura clássica, drogas, rituais indígenas, episódios autobiográficos inacreditáveis, gozações com o repórter. 

Era um sujeito que pensava o tempo todo. Dizia ser mentalmente insano, e dizia também que sempre tinha razão. É bem capaz.






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