Um mundo sem Chico Pereira vai ser um mundo muito sem
graça, mas teremos que nos acostumar. Como diz o mote dos cantadores: “Faz
pena, mas é o jeito”. Paciência. A vida da gente é uma corda de violão, e a
cada ano o tempo dá mais uma volta na tarraxa. Vamos aproveitar a música,
enquanto música vai havendo.
Para quem não sabe quem foi ele (o Brasil é grande),
Chico foi um artista plástico, professor e gestor de cultura que atuou
principalmente entre Campina Grande e João Pessoa. Era de uma geração
ligeiramente anterior à minha, o que fez dele uma espécie de irmão mais velho
que botava o braço no ombro da gente e nos empurrava para realizar coisas. E
que, conforme o momento, recebia a gente, escutava um projeto sem-pé-nem-cabeça
qualquer, e dizia: “Essa idéia é completamente maluca. Bora fazer.”
“Bora fazer” era
uma espécie de fórmula mágica que Chico impôs no tempo de sua gestão no Museu
de Arte Assis Chateaubriand, da FURNe (a Fundação Universidade Regional do
Nordeste foi a primeira encarnação da entidade que hoje é a Universidade
Estadual da Paraíba).
O Museu, criado em 1967, começou sob a égide de Raul Córdula
Filho; em 1969, passou para a direção de Chico. Eram os jovens no poder,
finalmente! Sinal verde para tentar alguma coisa que não tinha sido tentada até
então. Essa atitude foi seguida com a mesma descontração por José Umbelino
Brasil, que o sucedeu no cargo em 1974.
Já escrevi textos para várias exposições de Chico. Talvez
o meu primeiro texto sobre ficção científica tenha sido o que fiz para a
exposição dele Paisagens de Lithium (em
1975?...), mistura de colagem+pintura onde ele imaginava paisagens de um
planeta fabuloso.
Ele e seu irmão Lula Pereira (hoje um carioca-adotivo
como eu) eram aficionados da Colecção Argonauta. Eu era da geração de Lula e,
aos 16 anos, olhava Chico à distância, como se estivesse olhando um Antonio
Dias ou um João Câmara. O primeiro impacto me veio dos trabalhos da Equipe 3
(Chico + Eládio Barbosa + Anacleto Elói), um coletivo que trabalhava a seis
mãos numa tela, superpondo colagem, bico-de-pena, aquarela, guache e o mais que
houvesse à mão.
Para evocar aquela época, só me vem à memória um
comentário de Glauber Rocha a um entrevistador francês, dizendo que na geração
dele todo mundo lia de tudo, assistia tudo, e todo mundo era ao mesmo tempo marxista,
futurista, freudiano, anarquista, surrealista, tropicalista e tudo o mais.
(sede do Museu de
Arte, na gestão Chico Pereira)
Graças a Chico, principalmente, formou-se entre fins dos
anos 1960 e começo dos 1970 a chamada “turma do Museu” que incluía artistas jovens,
com menos de 20 anos, participando de suas primeiras mostras, gente como o
fotógrafo Roberto Coura e o artista Luís Barroso.
“Quem gosta de
passado é museu.” Este é um ditado popular da Paraíba, que aplicamos a
tudo, desde o futebol à política. É um cacoete dos jovens, esse dar-de-ombros
diante de referências ao Passado. Por que será? Eu já fui assim, e quando
reabro essa cicatriz percebo que a novidade é algo infectuoso, algo que nos
atrai e nos contamina. Quem é novo gosta do que é novo, porque quando temos vinte
anos sentimo-nos como que herdeiros do mundo, e achamos que tudo que é novo
veio para ficar.
Quem gosta de passado é museu! Lá pelos anos 1970, o
Museu de Arte patrocinou e hospedou um “Colóquio dos Museus Brasileiros” (não
sei se o nome era exatamente este) que trouxe a Campina Grande uma caravana de
gente vinda do Brasil inteiro, com uma série de palestras, mesas-redondas e
entrevistas que (falo por mim) mudaram inteiramente o conceito do que é um
museu, do que é novo ou velho, do que é passado ou presente.
Numa discussão remota travada nessa época, estávamos, uma
meia-dúzia, sentados nas vastas poltronas do gabinete de Chico, discutindo
projetos mirabolantes. Que tal uma exposição temática de artistas nordestinos?
Que tal um festival do cinema francês? Que tal um ciclo de saraus poéticos, com
recitais? Algum de nós disse: “Chico, pra você tudo parece fácil, porque você
tem um cargo.” E ele: “Mas não é um cargo!
É um instrumento! Não é uma
obrigação! É uma possibilidade!”.
A cabeça de Chico tinha várias vertentes quando virava o “artista
criador”.
Primeiro, uma curiosidade insaciável de tudo observar,
conhecer, praticar, aplicar. Segundo, um amor quase infantil, pré-intelecto, pela
imagem, pelo signo visual, algo que os profissionais do palavrório, como eu,
podem apenas imitar à distância e tentar não esquecer.
Terceiro, o respeito inegociável pela técnica, pela
habilidade fazedora, pelo craft, uma
seriedade típica de quem fez curso técnico na juventude. Quarto, aquela
capacidade do artista Pop para ligar
pontos distantes, reciclar temas e motivos, detectar tendências recém-nascidas,
sentir para onde sopram os ventos das modas e das anti-modas; captar “o
espírito do tempo”, como dizia Edgar Morin.
Definir o que é Arte
Pop é um pouco como preparar um sanduíche. Entre aquelas duas fatias de
pão, cada um bota o recheio que quiser. Aqui vão meus dois tostões: Arte Pop é tudo que é vinculado à
produção em massa, é disparado sobre o mundo como um despejo de espingarda de
chumbo miúdo, e, atingindo aleatoriamente uma amostragem-humana qualquer,
começa a ser revisto, reescrito, reinterpretado, recriado. Esse prefixo “re—“ é importante, porque na Arte Pop,
ao contrário das cópias xerox ou das fitas cassete, uma reprodução pode ser
mais densa e mais significativa do que a cópia de onde foi copiada.
Fui remexer textos antigos em busca de conforto, achei
este aqui, que fiz para a exposição Conexões
Desconexas, que Chico fez em 2012 na Usina Energisa (em João Pessoa). Não
tive como não dar uma risada.
Chico Pereira conta aos amigos que na noite
de abertura de sua exposição Conexões Desconexas ele levou para lá os
filhos pequenos, que se divertiram muito com os convidados, as obras de arte, o
coquetel, o ambiente festivo. No dia
seguinte, ele perguntou à sua filha de seis anos qual a coisa que ela tinha
gostado mais na exposição, e ela respondeu: “As empadinhas”. É uma resposta pop, uma resposta de quem
percebe intuitivamente que a Arte não é apenas a obra de arte pregada à parede,
mas todo o aparato que a produz e a cerca.
Arte sem empadinhas é como o cão de João Cabral sem plumas ou o rio de
Guimarães Rosa sem terceira margem.
E lá se foi Chico, aos oitenta e um anos. É como dizia um
sábio japonês: quando um vulcão se extingue perdemos o fogo, mas ganhamos uma
montanha para ver a paisagem.
Falamos pelo telefone pela última vez semanas atrás, pelo
celular de uma amiga em comum, que me deu a notícia de que ele estava de cama,
pós-cirurgia. Uma ligação meio cortada, com sinal ruim; a voz estava cansada
mas risonha. É a vida, amigo velho. Cansados, estamos todos. Risonhos, também. Sempre.
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