sábado, 3 de maio de 2025

5175) Cinco enganos (3.5.2025)



 
(Ilustrações: BING, inteligência artificial)
Prompt: 
Desenho hiperrealista em preto-e-branco. Uma família esperando o almoço e comendo "couvert" num restaurante. Pai, mãe, dois meninos e duas meninas com idades entre 8 e 12 anos. 

 
1
Lurdinha Pereira, 9 anos, estudante, foi convidada pelos tios e primos para ir ao jantar de aniversário do primo-rico Luquinha, e nesse dia lavou o cabelo, botou roupa quase nova, ouviu as mil recomendações dos pais, e foi apanhada de carro pelos parentes, que tinham carinho especial por ela, por seu temperamento espevitado e esperto, e pelos olhos azuis que ela arregalou muito ao entrar no restaurante, muito maior e mais cinematográfico do que ela imaginara, cheio de luzes e roupas bonitas, cheio de música e cores piscantes, e sentaram-se a uma mesa de toalha branquíssima, e o tio Adalberto, esportivo e tarimbado, pediu filé para todos, e ela ficou ali deslumbrada, faltavam-lhe olhos para tanto espetáculo, e o garçom trouxe travessas com torradinhas, manteiga em bolas, e vários talos verdes de coisas que ela mastigou pela primeira vez, e ao sentir os olhos de todos voltados para si obrigou-se a estar à altura da situação e comentou, despreocupada: “Puxa vida, tio Adalberto, esse filé está uma delícia!...”. 
 
 



Desenho hiperrealista em preto-e-branco. Um homem de 60 anos e uma mulher de 48 tomando vinho de mãos dadas numa mesa de calçada num restaurante em Bucareste (Romênia).

2
Hermínio Campos de Melo, 61 anos, bancário aposentado, solteiro, viu-se, num momento meio depressivo da existência, com mais dinheiro no Banco do que idéias do que fazer com ele, decidiu saiu um pouco de Jundiaí, onde vivera e trabalhara a vida inteira, folheou revistas de turismo, leu uma matéria elogiosa sobre Budapeste, cheia de fotos deslumbrantes, desistiu de conhecer o Rio de Janeiro, encontrou uma agência de viagens, explicou vagamente o que queria, mas Hermínio era tímido e tartamudo, não entendia tudo que lhe explicavam e tinha vergonha de pedir que repetissem, mas tirou passaporte, fez os voos, as conexões, padeceu de insônia e sede durante as horas intermináveis atado à poltrona da aeronave, desembarcou noutro país sem saber sequer dar bom-dia aos locais; mas Deus é grande e seus propósitos são insondáveis, porque Hermínio na verdade foi parar em Bucareste, e percorrendo aquelas romenas avenidas, aquelas praças, e descobrindo aqueles bares, aqueles cafés, Hermínio entendeu, ao descobrir o vinho tinto e ao entrelaçar os dedos com os de Milena Kovakovic, 58 anos, cantora de boate, que Deus escreve certo por linhas tortas e só não lê quem é muito burro.   
 
 



Desenho hiperrealista em preto-e-branco. Homem num escritório com escrivaninha e máquina de escrever, segurando um maço com 600 folhas de papel datilografado.


3
Andrzej Onderecki, 59 anos, funcionário público aposentado em Cracóvia, tradutor profissional em plena década de vigência da máquina Olivetti, da lauda A-4 e do papel-carbono, foi contactado por seu amigo Viktor Oblat, 72 anos, editor-assistente na casa editorial Ars Magna, daquela cidade, com uma oferta para uma nova tradução polonesa de Sense and Sensibility de Jane Austen, oferta que ele aceitou de imediato, afirmando ser um dos seus romances preferidos daquela autora, e dispensando inclusive o envio do original, pois tinha um exemplar em casa, e não foi com pouco entusiasmo que Andrzej se entregou à paciente, dedicada e nem sempre fácil tarefa de verter a prosa espirituosa e perceptiva da autora inglesa; mas, alguns meses depois, quando enviou para o amigo Viktor as centenas de laudas do original traduzido e várias vezes revisado, deparou-se com a estarrecedora informação de que tinha havido um engano na encomenda, e que o livro contratado era na verdade Pride and Prejudice; a obra trazida por Andrzej tinha sido já traduzida por outra pessoa e estava para chegar da gráfica a qualquer momento.
 
 



Desenho hiperrealista em preto-e-branco. Na sala de uma residência de classe média baixa, um homem de 60 anos e um garoto de 13 jogam xadrez, à noite.
 
4
Cuco Giménez, 61 anos, tipógrafo na cidade do México, cansado de um dia exaustivo no trabalho, às dez da noite ainda tinha afeição paterna bastante para jogar xadrez com Arturito, seu filho de 13 anos, em cuja inteligência apostava todas as suas fichas, com a paciência dos exaustos e sonolentos, com a obstinação dos fumantes, que após adiantar um bispo-da-casa-branca e anunciar: “Xeque!...” pegava o maço ao lado, acendia um Camel, e retornava a atenção ao tabuleiro e aos olhos expectantes de Arturito, e assim ficavam por cinco minutos, por dez longuíssimos minutos, por quinze insuportáveis minutos, até que Cuco, exasperado com tamanha hesitação filial, explodia: “Não vai jogar essa merda?! Já falei que é xeque, abestado!...” E Arturito, magoado e altivo, limitava-se a indicar com o indicador o peão que havia interposto três segundos após o avanço do bispo e que o pai não avistara, pois foi no momento justo em que, de olhos fechados, dava aquela baforada de cigarro que já salvou muita sanidade mental pelo mundo afora. 
 



Desenho hiperrealista em preto-e-branco. Sala de família de classe média, pai e mãe conversam com adolescente de 18 anos, cabeludo, vestindo roupas de roqueiro de heavy-metal. 
 
5
Jorginho Schmidt, 17 anos, desempregado, de Bragança Paulista, chegou em casa eufórico na hora do jantar, ansioso para dar aos sofridos pais a melhor notícia do ano e talvez de sua vida, que ele guardou até o momento sagrado pós o dar-graças e início da refeição, quando anunciou com voz trêmula de orgulho que havia sido convidado para integrar a banda Scorpions In The Soul, considerada por muitos (enfatizou ele) a melhor banda de psycho metal da cidade, ao que o pai travou sem encontrar resposta, mas a mãe, como sempre conciliadora e afável, respondeu: “Que bom, filho, finalmente! E quanto é o salário?...” 
 
 
 
 
 



 

Um comentário:

Luiz Roberto Guedes disse...

Eu tenho um cuento gêmeo desse de "Bucareste", mas que fica em Santos, SP, por casmurrice e sovinice do felizardo.