Existe um princípio na arte da tradução literária segundo o qual a gente não traduz apenas texto, traduz contexto também.
-- Você escreveu aqui: “naquele instante, uma angústia kafkeana se abateu sobre mim: e se alguém estivesse hackeando minha conexão e invadindo meu computador?"-- Sim, e o quê que tem?-- O leitor sabe o que é angústia kafkeana, sabe quem foi Kafka?-- Geralmente sabe. Kafka é um dos autores mais comentados do século 20. O leitor pode não ter lido um livro dele, mas tem uma vaga idéia do que o adjetivo quer dizer. Angústia, medo, paranóia, complexo de perseguição... E se eu uso o verbo “hackeando”, por que não posso usar o adjetivo “kafkeano”?-- Ah, todo leitor hoje em dia sabe o que é hackear.
Provavelmente o próprio Edgar Poe sabia, também, que na Antiguidade e na
Idade Média os velhos pergaminhos eram escritos em texto corrido, todas as letras
emendadas umas às outras e que de século em século foram sendo conquistados
importantes avanços: um espaço em branco separando cada palavra das outras... letras
maiúsculas indicando começo de texto ou nomes próprios... sinais de pontuação
para indicar as inflexões mais significativas da palavra falada...
O modo de “sinalizar” o texto muda de época para época,
de país para país. Uma variação interessante na qual fiquei de olho a vida toda
é o uso de travessões ou de aspas para indicar mudança de interlocutor no
diálogo.
Aqui no Brasil usamos travessões:
-- Acho que vou dar uma volta.-- Vai aonde?...-- Vou ali no bar de Genival, ver se encontro a turma.-- Vá, mas não demore, porque oito horas a gente vai sair para ir ao teatro.-- Ih, é mesmo. Talvez seja melhor esperar, então.-- Por mim tudo bem. Só não quero que a gente se atrase.
Todo mundo entende esse diálogo banal entre duas pessoas. Cada travessão indica novo interlocutor. O mercado editorial dos EUA, contudo, usa aspas. Lembro de um comentário antigo de Robert Silverberg. Ele pegou uma tradução italiana de um romance seu, e achou parecido com “uma lista de lavanderia”, porque as falas dos diálogos vinham precedidas por travessões.
“Não vamos atrasar, fique tranquila.”“Claro. Mas você sabe – teatro começa na hora.”“Ah, nem sempre. Já vi meia hora de atraso”.“Eles podem atrasar, a gente não. Detesto entrar numa fila de poltronas com a peça já começada, e a gente no escuro, pisando nos pés dos outros, feito idiota: licença... licença... desculpe...”
-- Qual é mesmo a peça que a gente vai ver? – perguntei.-- “Romeu e Julieta” – respondeu ela.-- Você só gosta de peça de amor – gracejei.-- E você só gosta de ação e aventura – retrucou ela.-- Pode ser. “Macbeth” é muito boa. – observei.
“Oh my God, the ship is sinking!...”, ejaculated the Captain.
Propus essa questão a um professor meu, anos atrás. Ele balançou a cabeça e falou:
-- Não se preocupe. Diga ‘ele disse’, ‘ela disse’. É
invisível. O leitor não vai reclamar de repetição, a não ser que você repita
isso em todas as falas... Esse é o problema a evitar.
Tinha razão. Vamos imaginar um diálogo entre três
pessoas.
Acordamos às 7 da manhã para viajar. Íamos eu, meu irmão Francisco, e meu pai. Fomos para a garagem, papai abriu o carro e começamos a nos organizar.-- Mochilas na mala do carro – disse papai. – Dentro, só o que precisarem durante o trajeto.-- Vou pegar minha garrafa de água, somente – disse eu.-- Eu levo meu táblet – disse Francisco.-- E na mochila, têm mudas de roupa suficientes? Outro par de tênis?-- Sim.-- Eu estou levando só um – disse eu.-- Tudo bem, mas se chover pode dar problema. Estão levando casacos?-- Faz frio lá? – disse Francisco.-- À noite esfria um pouquinho.-- Estou com uma camisa de lã.-- Pode servir. E você?-- Um casaco jeans, acho que basta – respondi.
Este diálogo está bem sinalizado, porque não é preciso dizer “Fulano disse” em todas as linhas: pelo fluxo da conversa, dá para saber quem está falando.
-- O Flamengo jogou até bem, hoje – disse meu amigo João, ligando o motor e pegando o fluxo de saída do estádio.-- Jogou a conta do chá – disse eu. – Mas deu pro gasto.-- O problema continua sendo essa defesa. Aquele gol deles... pelo amor de Deus.-- Todo jogo a gente leva um gol assim.-- Cruzou bola na área, eu cruzo os dedos.-- Isso é falta de treino.-- Sim, mas tem que jogar toda quarta, todo domingo...-- Toda semana.-- Toda semana. Quem tem tempo de treinar?-- Esse calendário é uma maluquice.-- Outra coisa: o time faz um gol e recua.-- É o mesmo problema. Time cansado.-- Recua, chama o outro pra cima.-- Pelo menos tem a chance do contra-ataque.-- Sem velocidade? Time cansado? Aaah...-- A sorte foi aquele gol de falta.-- Que nem falta foi.-- Foi, cara.-- Foi nada. Choque normal do jogo.-- Mas a gente mereceu.-- Sempre merece.
Quando eu vejo um diálogo como este, pouco sinalizado, há momentos em que preciso voltar lá no começo e sair separando mentalmente as linhas pares e as ímpares, para saber quem disse o quê. "Por isso," (dizia meu professor) "sinalize de vez em quando para o leitor não se perder".
Traduzindo um texto assim,
eu colocaria em pontos estratégicos um anódino “ele disse”, para ajudar o
leitor sem interferir no texto.
No exemplo acima, eu (se estivesse traduzindo) mudaria
uma ou duas linhas:
(...)-- Outra coisa – disse ele, freiando e esperando a passgem de um ônibus. -- O time faz um gol e recua.(...)-- Foi, cara! – insisti.(...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário