Lá por volta dos anos 1980, o fotógrafo francês Greg Girard estava andando e fazendo fotos dentro de Kowloon City, em Hong-Kong. Fotógrafo é como caçador: tem que estar o tempo inteiro com o olho atento e o dedo no gatilho. Às vezes, por um segundo de distração se perde a caça.
A caça, no caso do fotógrafo, é aquela foto de algo que cruza a nossa vista, e quando o artista pega a câmera e leva ao olho... babau tia Chica. Passou. Aquela foto, nunca mais.
Foi
o que aconteceu com Girard. Ele conta que viu uma comissária-de-bordo da Cathay
Pacific descer de um táxi e entrar no labirinto urbano de Kowloon City, puxando
atrás de si a mala-com-rodinhas. Sua elegância e postura faziam um contraste
brusco com o ambiente decadente em volta, mas ele a perdeu no labirinto de
ruelas antes de poder fazer uma foto.
(Kowloon City)
Para quem não sabe, Kowloon City, “a Cidade Murada”, ou “a Cidade Emparedada”, era um dos ambientes urbanos mais surrealistas do Oriente. Num espaço equivalente a um quarteirão de uma grande cidade, viviam mais de 30 mil pessoas enfurnadas em edifícios precários, decadentes e gigantescos, num viveiro humano que é difícil de acreditar sem ver.
Em algum momento, Kowloon foi considerada o local de maior densidade de ocupação em todo o planeta. Cheio de problemas criminais, sanitários, ambientais, urbanísticos, o complexo de edifícios foi demolido em 1994.
Quanto a Greg Girard, ele ficou com aquela imagem na cabeça durante anos. Todo fotógrafo (cineasta, pintor, etc.) tem essas coisas. É uma idéia que fica pendurada na memória, como uma ficha esperando a hora de cair.
E de repente apareceu a tecnologia da Inteligência Artificial, onde é possível descrever com razoável precisão a imagem que temos em mente, e... voilà!... A foto é feita.
Trabalhando em
parceria com a artista de Hong Kong, Bianca Tse, Girard forneceu a ela as
informações e depois de muitas tentativas algumas fotoficções foram compostas.
Não para se fazer passar por fotos autênticas, mas para recuperar uma idéia que
tinha charme em si: o contraste entre a elegância da personagem e a sordidez do
local.
Bianca Tse usa a I. A. principalmente para encurtar caminhos e reduzir despesas logísticas, diz ela:
Bianca Tse usa a I. A. principalmente para encurtar caminhos e reduzir despesas logísticas, diz ela:
Não preciso contratar atores, não preciso montar toda a cena, e, sim, isto poupa uma enormidade de tempo, e principalmente de dinheiro, porque não haveria ninguém disposto a investir em mim para criar esse tipo de obra.
Aqui:
https://edition.cnn.com/2025/01/01/style/bianca-tse-hong-kong-images-ai-hnk-intl/index.html
Qualquer pessoa pode se sentir incomodada com isto – no presente caso, os atores que hipoteticamente poderiam ter sido contratados e pagos por Bianca, para realizar suas fotos. A questão é que quando os recursos são poucos qualquer pulo-do-gato é bem vindo, qualquer solução barateadora, simplificadora.
O cinema brasileiro faz isto há séculos. A lei que vigora no mundo da Arte Precária é esta: “Se for esperar para fazer somente quando tiver condições, você não vai fazer nunca; faça agora, do jeito que der, e lá na frente a gente resolve os pepinos.”
Acho que a Inteligência Artificial vai desempregar muita gente, talvez até eu mesmo. Entretanto, quando um tsunami se aproxima não cabe ficar discutindo se o tsunami está certo ou errado. Já aconteceu, e a questão é como sobreviver a ele.
Os bateristas sobreviveram à invenção da bateria eletrônica. O teatro sobreviveu à invenção do cinema, e este à invenção da TV.
Bianca Tse usa a I. A. para criar imagens meio surrealistas, impossíveis de produzir com atores e cenários de verdade.
“Superpopulação” (acima) é um trabalho dela usando a ferramenta do Midjourney, e abre esta linha de argumentação: a I. A. pode nos ajudar a produzir fotos impossíveis, fotos além das possibilidades físicas de um fotógrafo tradicional. Deixa-se o território da foto propriamente dita e entra-se no território dos efeitos especiais e da computação gráfica.
Nos recentes incêndios acontecidos em Los Angeles, compartilhei nas redes sociais uma imagem da colina onde o letreiro HOLLYWOOD aparece com uma cortina de fogo por trás.
Várias pessoas vieram me advertir que a foto era feita com I. A., e que daquele ângulo seria impossível avistar o fogo. Aceitei a correção, mas com uma ressalva: para mim, o poder da imagem não estava no seu possível conteúdo jornalístico (“captei visualmente um fato que está acontecendo”), mas na sua simplicidade simbólica: Hollywood está em chamas.
Esse conteúdo simbólico seria o mesmo se a imagem fosse um cartum desenhado a nanquim, um quadro a óleo, etc. O mesmo impacto: “Hollywood está em chamas”.
Não há dúvida de que a I. A. potencializa um perigo grave, que já vinha desde o CorelDraw, desde o AdobePhotoshop: a possibilidade de alterar imagens reais ou criar “do zero” imagens novas, com total aparência de realidade, mesmo sendo falsas.
Existe uma linha evolutiva muito clara entre estas tecnologias. A grande inovação da I. A. é o fato de que o usuário nem sequer preciso dominar uma técnica de interferência na imagem. Bastam comandos verbais. A pessoa pode inventar uma foto ou uma pintura ou um filme sem pegar no mouse, apenas descrevendo o resultado que quer.
(ilustração: Bianca Tse)
As fotos de Bianca Tse oscilam nesse limite entre o possível e o impossível – exatamente como o próprio “bairro” de Kowloon em sua cidade natal, aquele “favelão”, aquela aberração urbanística que, como já se disse muitas vezes, era preciso ver para acreditar que existia mesmo.
Depois que transcorre um século, a distância entre o real e o irreal se torna uma questão de fé.
(Para quem tiver curiosidade,
no link abaixo há uma extensa matéria sobre Kowloon City, com numerosas fotos.)
https://cityofdarkness.co.uk/category/the_city/
Um comentário:
O melhor que li até o momento sobre I.A.
Postar um comentário